Um pouco das Alagoas
O texto abaixo foi originalmente escrito para os Diários Associados e publicado no Diário de Pernambuco de 28 de setembro de 1945.
O seu autor era filho do alagoano Misael Domingues e da pernambucana Maria Domingues Lacerda (segunda esposa de Misael).
Alpheu Domingues nasceu no dia 16 de agosto de 1892 em Garanhuns, Pernambuco. Com a morte de sua mãe, em 1895, foi levado para morar com o tio, Francisco Domingues, em Maceió.
Como o seu pai casou-se novamente, desta feita com Anna Domingues d’Além, Alpheu foi morar com eles em Jaboatão a partir de 1° de março de 1906, onde permaneceu até os 14 anos de idade.
Já na capital pernambucana concluiu o curso de Agronomia, em 1918, na Escola de Agronomia de Socorro, vinculada a Escola de Engenharia de Pernambuco. Até 1931 trabalhou na Paraíba. Depois foi morar e trabalhar no Rio de Janeiro.
Dirigiu o Serviço Florestal do Ministério da Agricultura na Paraíba e foi Delegado Federal do Serviço do Algodão.
A partir de maio de 1943, foi morar nos EUA como adido agrícola da Embaixada do Brasil em Washington. Lá permaneceu até 1949.
Aposentou-se em 1955 e a partir de 1961 voltou a morar em Recife, onde faleceu em 19 de agosto de 1973.
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Alpheu Domingues
Tive, ontem, á noite, aqui, nos Estados Unidos, por mera casualidade, uma surpresa, que me reavivou com as cores da mais grata emoção, reminiscências das Alagoas, onde vivi grande parte de minha meninice.
Na procura de uma emissora do Rio para ouvir-lhe os programas de rádio dou com essas palavras: “Estação do Palácio dos Martírios, na frequência de 32,2, irradiando para Alagoas.”
Apuro a sintonização, com o maior dos interesses, para identificar se a voz nortista daquele “speaker” vinha mesmo direta da praça dos Martírios, em Maceió, e em seguida escuto a voz de um padre que falava sobre o congresso eucarístico, exortando as famílias de Maceió a hospedarem os peregrinos, na falta de cômodos já todos tomados nos hotéis alagoanos. Detenho-me nessa estação e ouço os ecos da propaganda política para as eleições de 2 de dezembro próximo, e, em seguida, um samba de Ciro Monteiro — “Obrigação“. Tudo isso saído do Palácio dos Martírios.
Precisamente às 8 horas da noite, ou seja, uma hora a menos nos relógios da capital alagoana, o “speaker” encerrava a sua irradiação, despedindo-se dos seus ouvintes com a promessa de voltar no dia seguinte aquela mesma hora.
Estão de parabéns os que se utilizam da emissora dos Martírios. Dou-lhes o meu testemunho voluntário, aqui de tão longe, que as irradiações também são ouvidas, nos rádios de ondas curtas, dos Estados Unidos.
O fato não merecia ser divulgado por mim se se tratasse de outra estação. Mas as evocações de um passado que vivi, na minha infância tiveram força para sugerir este artigo em homenagem à terra alagoana e as iniciativas atuais de seus valorosos filhos.
Vieram-me à lembrança, de uma só vez, enchendo o meu pensamento tudo o que eu vi e senti, em tempos idos, quando, por onze anos a fio, no melhor tempo de minha vida, traquinava com crianças da época, nas calçadas da rua do Livramento, à noitinha, depois que o homem da luz elétrica mudava os carvões pretos e compridos das lâmpadas foscas que iluminavam, do topo dos postes de madeira, as ruas de Maceió.
E como uma película de cinema, enquanto eu ouvia a Estação dos Martírios, desenrolavam-se, diante de minha retina, aquelas cenas da Levada, muito cedinho, antes do sol nascer, quando as canoas, aproam pejadas de sururu, batata e macaxeira, amendoim e melancia, mangas e laranjas, para abastecer o mercado de Maceió.
Aqueles bondes puxados a burro, subindo a ladeira do Farol, para depois descerem a mesma ladeira, pelo efeito da gravidade, mas sem o animal que passa a ser atrelado atrás acompanhando o veículo em desordenado trotear.
Aquelas missas das cinco horas da manhã, na igreja do Rosário, celebradas pelo padre Rocha e as da igreja do Livramento, pelo cônego Procópio, com os seus sapatos de verniz e bolotas roxas.
Aquelas festas profanas do adro da igreja de São Benedito — santo dos pretos — que duravam uma novena, com os seus carroceis, as suas barracas e os seus jogos de toda sorte.
Os reisados e os bumbas meu boi de Bebedouro, capitaneados por Bonifácio da Silveira.
A tipografia de Lavenère, de onde saía o “Evolucionista“, todas ás tardes, exceção dos domingos.
As querelas pela imprensa entre meu tio Francisco Domingues e Jacinto Pais Pinto, a propósito de assuntos postais.
O Jornal de Alagoas, com as crônicas carnavalescas dos bailes Terpsicore e da Minerva, duas sociedades dançantes que havia em Maceió.
As negras rotundas, de cabeção muito alvo. vendendo amendoim torrado e cozido, pés de moleque e mungunzá de coco.
Os molequinhos gritando na rua tapioca molhada, em folhas de bananeira, cortadas em losango, vendidas a vintém cada uma.
A ponte de embarque, como um promontório de ferro, de mar adentro, para aproximar os vapores da praia de Jaraguá.
As comemorações do dia de finados no cemitério com a missa dos mortos na capela do campo santo.
Os rigorosos jejuns da semana santa e o hábito de se pararem os ponteiros dos relógios das casas dos mais devotos a partir de quinta-feira até o sábado de aleluia, quando os meninos começavam à apupar, entre uma algazarra louca, os judas nas praças públicas.
O carnaval alagoano, com as suas bisnagas de chumbo e as suas borboletas de papel de todas as cores que as moças traziam no peito e na cabeça. O famoso Zé-Pereira, de sábado de Momo, enchendo as ruas pacatas com ruído de zabumbas e toques de corneta.
Este era Maceió de meu tempo. Do tempo do colégio do professor Agnelo e do censor Jatobá, amante de dar bolos na meninada que não acertava as lições.
Do tempo da padaria de Chico Ribeiro, a rua do Comercio, fazendo pão francês e rosquinhas torradas, como nunca vi na minha vida.
Do tempo da fábrica Morais apitando as cinco horas anunciando a saída das operárias que vinham tresandando a fumo.
Do tempo de Fernão Velho, com a sua fábrica de tecidos, o seu banho de bica, que era uma delícia a dos festejos de Natal, com o coco e as emboladas dançadas e cantadas por três dias e noites seguidas, nos trejeitos das umbigadas.
Depois Maceió mudou. Da última vez que a vi já não era a mesma terra.
Já o sururu havia desaparecido. Já as muriçocas rareavam. O Jacutinga, feito bairro elegante e de gente rica. Os bondes elétricos substituindo os de burro. Os aviões baixando na Levada, a antiga Levada das canoas. Outras caras. Outros cenários, diferente em tudo.
Só não mudou na minha lembrança o tempo passado nas Alagoas. cujas reminiscências o rádio do Palácio dos Martírios veio avivar, ainda mais, na memória do meu coração.
Evidenciando as nossas belezas quando eram valorizadas e cuidadas…
Nem meu pai ainda era nascido.