Tradições do Natal

Publicado originalmente no Diário de Notícias de 25 de dezembro de 1953

Nau Catarineta em Maceió no início do século XX

Manuel Diégues Júnior

Marujada da Jacutinguense em 1908, Maceió. Revista O Malho

Velhas, sempre conservando porém as graças de seu colorido, são as tradições mantidas pelas populações brasileiras no período natalino. É certo que muito vêm sofrendo estas tradições na pureza de suas origens lusitanas, ao influxo de influências novas e em face da introdução de elementos culturais diversos; mas é fora de dúvida que, de modo geral, persistem os velhos costumes, velhos usos, antigas tradições.

Aqui ou ali varia a maneira de festejar o Natal. Há, porém, um traço comum, um sentido de unidade a presidir a estes festejos: o sentimento religioso, o espírito cristão, que se anima. Se no Nordeste se mantém os folguedos, danças dramáticas ou auto populares, dançados em tablados armados na rua, ou se no velho Rio de Janeiro se armavam presépios tradicionais, procurados e visitados pelo povo, ou ainda se em Santa Catarina saem as pastorinhas cantando “ternos reis”, ou se por todo o Brasil se vai estendendo o uso da árvore de Natal, introdução sem dúvida dos grupos estrangeiros na área por eles colonizada e logo expandida pela mania de imitar o que se faz em outros povos — na Europa, sobretudo — o fato é que na base de tudo, expressão de tudo, está a ideia religiosa, o sentimento cristão de festejar o nascimento de Cristo.

São tradições que se vão modificando, evoluindo ao sabor de aspectos que surgem de novos elementos introduzidos. Mas que mantém, nas populações brasileiras, o fundo cristão de sua formação. Se se aceitam cantos alienígenas, logo adotados e espalhados — como é o caso da austríaca “Noite Feliz”, tão tocada e cantada entre nós de alguns anos para cá — também conservam, sobretudo as populações menos sujeitas a contatos externos, os velhos costumes, as tradições ancestrais, de base essencialmente lusitana.

Marujada Santa Amélia em Maceió no ano de 1908. Revista O Malho

É sobretudo no Nordeste que se conservam, na continuidade dos anos, os festejos mais típicos e característicos, por sua origem de influência ou de inspiração lusitana, das comemorações do Natal no Brasil. Mantém-se vivas, alegres, permanentes, as tradições herdadas do nosso bom e sempre querido avô português; a própria expressão “festa” já traduz a procedência lusitana, pois em Portugal se conhece como “a noite de festa” a noite de Natal.

A festa é o período das comemorações do nascimento de Cristo. Começa na véspera de Natal e geralmente se prolonga até o dia de Reis. Às vezes, os festejos populares se iniciam no domingo que antecede o 21 de dezembro e se encerram no domingo seguinte a 6 de janeiro: é uma maneira de alongar um pouco mais o prazo dos festejos. Estes são de modo geral profanos, embora se lhes sinta o fundo, a ideia, o sentimento religioso.

A maior parte dos folguedos conservados na tradição popular nordestina são, senão de origem, ao menos de inspiração lusitana; é o caso da Chegança, do Fandango, do Pastoril, do Presépio. Outros se ligam a reminiscências da atuação portuguesa em suas relações com o mundo africano, em particular através da escravidão ou da vinda de negros para o Brasil, e aí se contam o Maracatu, o Quilombo, o Reisado ou Congos, o Caboclinho. Mas de modo geral pode dizer-se que tais folguedos aqui, no Brasil, é que se estruturaram.

Desde os princípios de dezembro começam os preparativos para a festa. Uma das tradições desta época — dos começos do mês — é a distribuição de cartões em que os profissionais pedem suas festas. Lixeiros, distribuidores de pão, leiteiros, carteiros, estafetas etc. dirigem-se à sua freguesia, a que serviram durante o ano, e o fazem em versos. São cartões enfeitados, ramos de flores, paisagens, crianças, que traduzem a maneira de se pedirem as festas. Os versos, espontâneos, naturais, às vezes de “pé quebrado”, outras de rima forçada, exprimem os sentimentos dos profissionais.

Boas festas!… é o que deseja
Este humilde servidor:
Que no aconchego do seu lar
Reine Paz, Saúde, Amor!

São estes os votos que faço
No correr do ano inteiro
No cartão vos cumprimenta
O vosso efetivo leiteiro.

Já se têm iniciado igualmente, nos começos de dezembro, os ensaios dos grupos que vão apresentar os folguedos. Para sua exibição armam-se, na praça pública, tablados ou então barcos, imitando as velhas naus portuguesas. Antigamente armava-se uma para a Chegança, e recebia qualquer nome que o dono do brinquedo quisesse dar: Minas Gerais, Farol etc., e outra para o Fandango, e então recebia obrigatoriamente o nome de Nau Catarineta. Hoje, porém, de certo em face das despesas que o trabalho exige, constrói-se apenas uma embarcação, e nela dançam alternadamente a Chegança e o Fandango.

Nau Catarineta construída em uma das ruas de Maceió no início do século XX

Ambos estes folguedos evocam motivos marítimos, a epopeia náutica lusitana, a glória de Portugal através dos mares, pelo mundo afora, descobrindo, conquistando, ocupando terras; e transmitindo a fé, dilatando o sentimento religioso, pelas populações indígenas. Daí se reunirem nestes folguedos o motivo marítimo e o motivo religioso: aquele, a proeza marítima, a aventura dos portugueses, este a ideia cristã acompanhando a expansão marítima. Mar e religião se unificam na expressão popular, conservando-se na memória tradicional, e preservando assim, através do povo, o heroísmo e a religiosidade do português navegador.

Do presépio há velha notícia: a do padre Fernão Cardim, em fins do século XVI. É talvez a primeira informação sobre presépio no Brasil. Diante dele o irmão Barnabé tocou seu berimbau, e a todos divertiu e alegrou naquela noite de Natal. E a tradição do presépio continuou, persistiu, marcou a festa do Natal no velho Brasil colonial.

No Rio de Janeiro houve, no século XIX, presépios afamados, em diferentes épocas, segundo nos conta Vieira Fazenda. Este magnífico cronista das coisas cariocas refere-se a, pelo menos, quatro: o do Convento da Ajuda, o da ladeira de Santo Antônio, o do cônego Felipe na ladeira da Madre de Deus, e o do Barros na rua dos Ciganos. Não indica, entretanto, se se dançavam auto pastoris diante destes presépios.

É possível que sim. A existência dos autos pastoris está ligada aos presépios. Diante destes é que as pastoras dançavam, desenrolavam-se as jornadas e os bailes, disputavam-se os cordões. São tradições que vão esmaecendo, mas ainda conservadas no Nordeste, em várias de suas áreas, as dos pastoris dançados em tablados armados na rua ou em casas de famílias diante do presépio. Foi no século XIX e começos do atual que o esplendor dos pastoris alcançou seu ponto culminante, o auge de sua glória, de sua fama, e também dos “maus olhos” que lhe botaram.

Mário Sette os evoca em suas crônicas sobre o Recife; sobre eles encontramos referências igualmente em jornais de século passado. Os excessos a que chegaram os pastoris, em Pernambuco, foram de tal ordem que a própria igreja teve de censurá-los. As disputas entre os cordões encarnado e o azul eram motivos de brigas, lutas, às vezes mortes. Em Maceió a Câmara Municipal chegou a baixar posturas proibindo a exibição de pastoril e outros folguedos sem prévia permissão daquela Câmara.

O entusiasmo popular se mantém vivo nestes folguedos, que compreendem os festejos natalinos. O ciclo do Natal é todo ele um misto de festas profanas e sentimento religioso: evoca-se o nascimento de Cristo através de autos, danças dramáticas, que representam episódios de fundo religioso. Mas a estes aliam-se outros folguedos: o de reminiscências de lutas, de batalhas, de disputas. É o caso dos folguedos de influência africana, muitas vezes evocação de lutas entre portugueses e africanos — como sucede com os Reisados ou com os Congos — ou de lutas contra os negros palmarinos — como é o caso do Quilombo.

É um estudo a ser feito, face aos subsídios existentes, poucos e insuficientes ainda, e a novas pesquisas a serem empreendidas, o da difusão destes folguedos, não é possível de fixação segura diante da terminologia variada que apresentam. Urge um levantamento de todos os folguedos conhecidos e brincados pelo Brasil afora, fixadas as respectivas épocas de exibição, para que se possa conhecer o que temos neste campo de festas populares.

Marujada São Paulo, do Farol em Maceió. Era dirigida pelo coronel José Pedro. Revista O Malho de 1922

Seria a maneira também de saber-se como se vão conservando, por estes brasis afora suas tradições da festa de Natal, como se festeja o acontecimento máximo da humanidade cristã. É de se crer que estas tradições ainda se mantém vivas, contínuas, perenes no Nordeste, conservadas e transmitidas pelas gerações. Já em outras áreas, influências diversas vão modificando a paisagem cultural, e no meio dessa modificação vai também a das comemorações do Natal.

Por outro lado, em algumas áreas, os hábitos e usos de origem não portuguesa, como sucede nas zonas de colonização alemã, ou polonesa, ou italiana, introduzem outras maneiras de festejar o Natal. Embora se mantenha o fundo cristão, ou especialmente o católico, em grande parte desses grupos, em outros vão tendo difusão costumes e hábitos diferentes de fácil irradiação. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a árvore de Natal, hoje inteiramente difundida por esses Brasis afora.

Contudo, vale ressaltar que as velhas tradições lusitanas permanecem, aqui ou ali modificadas, atenuadas, mas de modo geral vivas. Vivas sobretudo na memória do povo, das populações simples, em cujo meio continua o episódio de 1953 anos [nascimento de Cristo] passados a ser revivido com emoção, através de comemorações em que, à pureza de sentimentos, alia o melhor ideal de solidariedade humana e de fraternidade cristã.

1 Comentário on Tradições do Natal

  1. Fernando Augusto // 3 de dezembro de 2019 em 05:39 //

    Tradição que não mais existe.

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