Retrato e Caricatura

Palestra proferida na Academia Alagoana de Letras em 19 de setembro de 1929

O iê-iê-iê visto por Carlos de Gusmão

Por Carlos de Gusmão

Carlos de Gusmão nasceu em 11 de setembro de 1885 no Engenho Castanha Grande em São Luiz do Quitunde

Eu sempre pensei que a caricatura parece mais com o indivíduo do que o próprio retrato!

Não sei se já houve quem pensasse e, pensando, dissesse essa extravagância. E eu até ontem tive o cuidado de esconder no silencio da minha timidez o pensamento que me tomava, quando transportado aos domínios da arte de Guevara. Tinha medo de dizer a possível tolice.

Mas chegou o dia.

Parece que tenho razão.

Digo por que.

No retrato, fotografado ou copiado do natural, ou de outro, pelo desenhista, é, em regra, o indivíduo que aparece aos nossos olhos, simplesmente. Digo em regra, porque nunca uma chapa e só raramente um gênio pode oferecer-nos uma verdadeira interpretação do retratado. Mas, em regra é o indivíduo, ele objetivamente, que aparece, e nunca aquele que nós vemos. Eu poderia dizer melhor – aquele que a nossa observação vê, ou então, — que o nosso senso estético descortina.

Não sei se me exprimo bem.

Para mim, por exemplo, vai uma grande diferença da rosa que está no jardim, que mesmo de relance vejo, mas sem me prender a atenção, ou que nas mesmas condições se acha numa estampa, pintura, ou fotografia, para aquela que realmente eu olho, observo, admiro e até sinto. Talvez fique bem dizer, sintetizando — entre a rosa que vejo e aquela que observo. Talvez ainda fosse melhor admitir — entre a que meus olhos veem e a que estou vendo. Sim, porque meus olhos veem a rosa, mas meu pensamento também a vê, também a vệ meu cérebro, e, às vezes, com que outros aspectos! tão grande! tão alegre! tão bonita! com um colorido tão especial! tão cheirosa! tão cheia de saudades e recordações!

É por isso que um cravo de defunto é tão feio, tão triste, e parece preto, apesar de aparecer e ser visto pelos nossos olhos tão amarelo! tão dourado! tão vivo! tão berrante!

O cachorro que me atacou na estrada deserta tinha na minha impressão um aspecto muito diferente do que teria o seu retrato fotografado, mesmo naquela ocasião. Eu lhe vi a boca enorme aberta, com uns dentes! umas presas de leão, afiadíssimas e grandes e de cujas pontas como que já pingava o sangue das minhas pobres pernas. O cachorro que eu vi se parecia mais com a caricatura formada na minha imaginação, do que certamente com a fotografia que dele se tirasse.

O boi que, na campina do engenho, levantou a cabeça um dia para mim, cavou o chão com a pata e investiu, parecia-me uma fera e tinha um chifre de tamanho descomunal, como nunca mais eu vi na minha vida…

O professor da minha infância, aquele que ralhava, dando murros na mesa, limpando os óculos e prometendo bolos de palmatória, não era nunca o que eu via no retrato da sala, posto na moldura, tirado na fotografia “Jatobá”, ali defronte do palácio velho. O professor que eu via era outro, gravado no meu cérebro com os traços de uma impressionante caricatura.

Barão de Vandesmet caricaturado por Carlos de Gusmão no livro Bôca da Grota de sua autoria

Vê-se, portanto, que o retrato em regra não é a representação exata do que vemos, que nos impressiona. A caricatura está evidentemente mais próxima. Há uma grande diferença entre uma e outra das representações gráficas, ou seja a diferença que vai entre a cópia e a interpretação, entre o ver e o observar, ou melhor o sentir.

E não será o retrato uma cópia e a caricatura uma interpretação? É certo que interpretação grotesca. E a propósito eu me aventuro a dizer também que não estou muito de acordo com isto de se admitir que a caricatura é uma expressão grotesca, ridícula. Para mim, tanto se caricatura o feio, o ridículo da pessoa, como caricaturável deve ser qualquer outro aspecto de sua individualidade. Porque não admitir a caricatura da bondade de uma pessoa, da sua fisionomia simpática, do seu caráter, da sua beleza? Isso tratando-se de pessoas.

A caricatura exagera os traços, dá maior expressão, maior acento, de acordo com a impressão do observador, e isso pode suceder em todos os sentidos. A mulher bela que impressiona o artista pode ser por ele, numa inspiração, caricaturada, para aparecer exageradamente bela. Tudo depende do talento desse artista; e se não houve ainda quem fizesse caricaturas a não ser do físico feio, caricaturas grotescas, não podemos duvidar que apareçam cerebrações capazes de fazer a caricatura da beleza, da inteligência, da bondade, etc. Se eu me limito a ter a pretensão de fazer caricaturas de traços grotescos, é porque a minha inteligência não pode ir além: fico neste degrau das concepções artísticas do gênero, a meu ver o mais rudimentar, o mais pobre. Realmente, estas caricaturas são concepções que fazem uma obra de destruição, a mais fácil de realizar em todas as coisas da vida terrena. Nem todos sabem construir, ao passo que destruir é sempre fácil.

O retrato é objetivo: representa o objeto copiado, em si, por si, só. A caricatura é subjetiva: traduz a imagem do que nos impressionou, o nosso estado d’alma a respeito do que observamos, e por ser assim, concluo, exprime melhor, interiormente, a vítima da nossa observação, ou seja parece mais com ela, como a vemos na nossa apreciação estética, do que o retrato que a máquina reproduziu.

No retrato não há sentimento, não há opinião, não há crítica. Ele é puramente material, quando a caricatura é por assim dizer mental.

Está claro, e eu já fiz a ressalva, que os gênios da pintura interpretam os seus retratados, como os grandes paisagistas põem nas suas telas todos os sentimentos que o talento lhes permite. Isso, porém, é coisa mui rara… Em regra só vemos copistas, de figuras ou da natureza.

Mas repito, o retrato se parece menos com a pessoa, do que a caricatura. Do contrário, digo ainda, a nossa apreciação pessoal daquilo que os olhos veem, nada valeria.

Guedes de Miranda caricaturado por Carlos de Gusmão para ilustrar o seu texto

Ali está por exemplo, o nosso presidente. A gente olha para ele com os olhos da cara e também com os do pensamento, e vê o nosso admirável Guedes de Miranda: dos lábios, finos como uma linha da Pedra, corre um sorriso irônico para as coisas materiais da vida; do cérebro jorram ideias que saem aos milhões pelos cabelos assanhados como uma rodinha de fogo de noite de São João. Sacode a cabeleira, e a nossa imaginação vê e sente ali, varrendo o céu, como o clássico panache de Cyrano, a copa de um coqueiro alto de Tatuamunha, batido pelo nordeste…

Ora, nem o corpo esguio, nem os lábios finos, nem aqueles óculos grandes e brilhantes como lanternas de auto que está infringindo o regulamento de veículos, nem a cabeleira revolta que nós vemos, nada disso é o que o retrato do Guedes copia. Não. Só a caricatura reproduz o Guedes tal qual (com licença dos futuristas) o nosso estado d’alma o vê… Somente ela nos pode dar esse Guedes “mental” que nós vemos.

E querem que lhes diga uma novidade?

Vou dizer: acabo modificando o que disse, para ir além.

A caricatura não se parece com o indivíduo, somente mais do que o seu retrato: ela com ele se parece mais mesmo do que ele próprio!

É por isso que isto aqui — a caricatura do Guedes — que eu fiz, se estiver bem-feita, deve parecer mais com ele, do que o Guedes que está solenemente presidindo a esta sessão.

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