Paulo Renault, poeta, compositor e boêmio

Paulo Renault e Chico Elpídio foram parceiros em algumas músicas

Paulo Renault faleceu com quando tinha apenas 45 anos de idade

Por Geraldo de Majella*

Paulo Renault Braga Villas Boas [1958-2003], poeta, compositor, funcionário público, trabalhou na Fundação Cultural Cidade de Maceió e Fundação Teatro Deodoro – Funted. Antes havia trabalhado como vendedor da Brahma.

Nasceu em Maceió no dia 29 de outubro de 1958 e faleceu em Maceió no 19 de novembro de 2003. Filho de Renault Paranhos Villas Boas e Leda Braga Vilas Boas. Cursou até o 3º período de Administração de Empresas no Centro de Estudos Superiores de Maceió – CESMAC.

Casou-se com a professora Márcia Maria Lima Villas Boas; o casal teve dois filhos, Rodrigo e Sérgio Lima Villas Boas.

A política foi um dos assuntos que mais atraiu Paulo Renault, além da poesia e da boemia. Tinha nas veias o sangue do histórico militante comunista Júlio de Almeida Braga, seu avô e um dos fundadores em Alagoas do Partido Comunista Brasileiro – PCB, razão fundamental de tanto falar do avó e de relatar em segunda mão as proezas do velho comunista nas prisões e durante a vida de operário e inventor de instrumentos mecânicos.

Paulo Renault ousou na juventude entrar para a militância política no antigo PCB, mas logo admitiu não ser essa a sua opção de vida. Pediu “baixa” do PCB e seguiu o seu caminho de poeta e compositor. O que de fato estava certo, pois a política partidária não seria o melhor caminho para ele trilhar.

Paulo Renault no Grupo Terra

Paulo Renault foi parceiro de Chico Elpídio, Eliezer Setton, Marcondes Costa e Carlos Moura, dentre outros. Das músicas compostas em parceria com os amigos, algumas foram gravadas. A temática de suas composições foi sempre focada na condição social do ser humano, seus desejos e suas fraquezas, com influências da bossa nova, da música de raiz nordestina e da MPB.

Integrou um dos mais importantes grupos musicais de Alagoas, o Grupo Terra. Esse conjunto musical foi criado no final dos anos 70 e permaneceu até o início dos oitenta. Márcia, sua companheira, diz que ele “possuía aguçado senso musical e uma voz privilegiada, com um agudo incomum, e que a sua relação com o violão – instrumento de sua predileção − era apenas a de um pretenso tocador, pois não se dedicava com a profundidade que gostaria ou deveria”.

Os músicos que constituíram o Grupo Terra se tornaram uma referência da sua geração. Entraram de corpo e alma na produção de música alagoana, com forte influência do estilo regional. Durante a década de 70 despontavam no cenário artístico nacional grupos musicais como o Quinteto Violado e a Banda de Pau e Corda ambos pernambucanos.

A motivação dos músicos era também a do compositor Paulo Renault, que tinha como uma das suas características pessoais o entusiasmo e a grandiloquência. Talvez por ser dessa maneira, “mergulhava de cabeça” em tudo que escolhia

A passagem pelos vários órgãos públicos de cultura era, além do seu oficio, um caminho para tentar se expressar politicamente no ambiente artístico e cultural das Alagoas.

Autodidata

O temperamento irrequieto o conduziu por toda a vida – curta, é bom que se destaque. Morreu com apenas 45 anos. Era autodidata; sem que nunca houvesse estudado direção teatral, codirigiu com Paulo Déo, em 1995, uma peça do consagrado escritor gaúcho Moacyr ScliarIntrodução à Prática Amorosa.

Três anos depois, em 1998, ajudou a montar o espetáculo Maceió Cidade Aberta, com o seu amigo o cantor e compositor Chico Elpídio. Esse show foi baseado numa de suas obras, e os poemas foram musicados por Chico Elpídio. A direção ficou a cargo do experiente diretor José Márcio Passos.

O trabalho como produtor musical também o atraia e por muitos anos produziu shows de cantores alagoanos como Eliezer Setton, Leureny Barbosa, Nara Cordeiro, Wilma Miranda, entre outros. O envolvimento na produção não era restrito à montagem formal do espetáculo apenas mas acabava se envolvendo muitas vezes na escolha do repertório; opinava sobre os arranjos musicais e até mesmo sobre a apresentação no palco de cada um dos artistas.

Livros

Capa do livro Maceió Cidade Aberta de Paulo Renault

A Saga do Toureiro é o primeiro livro, com 18 poemas inéditos, editado pela FUNTED em 1990. O livro fez parte da coleção Palco e Luz. Os poemas são críticos ao mundo capitalista globalizado, onde a ideologia do individualismo domina o mundo e transforma os seres humanos em objetos e/ou máquinas de consumo.

Quando Paulo Renault morreu, Maceió Cidade Aberta estava sendo produzido. Os 25 poemas que compõem o livro foram ilustrados por Mário Aloísio, arquiteto e seu amigo. Só em 2004 foi publicado pela Editora Catavento.

Maceió Cidade Aberta é um conjunto de poemas em que a cidade e sua gente são retratadas. A identidade do poeta com a cidade natal rende muito mais que uma ode. É possível perceber o que liga um poeta marginal aos marginalizados sociais. É a denúncia do cotidiano mais cruento, são os encontros e desencontros ocorridos entre Paulo Renault e Maceió.

A cidade, que sucumbe diante da miséria a que sua gente é arrastada, é a mesma cidade em que o poeta foi criado e andou pelos becos, ruas, avenidas, cruzou córregos e se banhou na lagoa Mundaú e no mar. O descaso e o sofrimento do povo e da cidade se confundem com a vida do poeta que romanticamente quer vê-la aberta, livre da miséria e feliz.

Renault produzia lentamente. Publicou apenas dois livros com 43 poemas; deixou outros poemas inéditos, letras de músicas e textos esparsos que merecem ser organizados em outro volume, para assim completar a sua obra.

O boêmio

Paulo Renault e Chico de Assis

A boemia era uma das atividades que lhe davam prazer desde a adolescência. O bate-papo em bares, restaurantes e botecos, nas casas mais seletas ou na periferia, não o incomodava e da sua boca ninguém ouviria nenhum comentário ou resmungo. O boteco com três mesinhas à beira do riacho do Salgadinho era um termômetro da sua satisfação.

Agora imaginem os finais de tarde no Largo do Mercado de Jaraguá, no alegre Buraco da Zefinha? Um típico pé-sujo da cidade, mas que durante muitos anos foi frequentado por boêmios de várias extrações sociais. Era o local onde o poeta pontificava com mais assiduidade.

O samba cantado por Zé Paulo era o que havia de melhor e diferente nas tardes de sábado em Maceió. O velho cantor de samba, com seus óculos escuros, adorno que o identificava muito mais que o documento de identificação, o RG.

Os intervalos invariavelmente eram destinados aos recitais dos poemas de sua autoria ou de outros poetas. Os amigos, depois de tomar muitas, insistentemente solicitavam que Paulo Renault declamasse Vou embora pra New York, o seu mais conhecido poema. Era um delírio embebido no álcool. Palmas, assovios, gritos e mais bebidas, sempre.

No entorno do Buraco da Zefinha e do poeta se formou uma confraria em estilo profundamente anárquico, e até foi criado um bloco de carnaval chamado Família Josefina. O bloco desfilou apenas um ano pelas ruas do bairro. O poeta foi um dos destaques. Fantasiado, desfilou pelas ruas e becos de Jaraguá. O ponto alto foi o momento em que solenemente foi afixada uma placa em homenagem à Rapariga (prostituta) Desconhecida.

O território mais conhecido das prostitutas em Maceió recebeu em pleno carnaval essa singela homenagem póstuma. Nada mais justo do que se prestar uma homenagem pública às trabalhadoras do sexo.

Vou embora para New York

Vendi minha alma ao diabo.
A preço bom, é claro.
Vendi-a, porque Deus não quis comprá-la.
Se quisesse,
Teria me oferecido pelo menos um dólar.
Ao que o velho satã pagou-me cinco.
(Demais até para uma alma imprestável e vazia:
Que fiquem com ela).
Pouco me importa se alguns tolos,
Ao me ver passar pelas ruas,
Gritem: venal!
Claro, eles fingem que não são desalmados.
Conversa!
Todos eles falam a mesma linguagem:
Isso e aquilo, aquilo e isso, isso e aquilo, sempre a mesma coisa.
O que significa dizer
Que alguém lhes tirou as almas.
E as substituiu por algo
Que a si mesmo
Atribui ser verdade ou mentira.
Já eu, sou diferente:
Vendi-a e quero uma nova.
Para isso,
Pretendo viajar o mundo inteiro:
Ao mercado negro da Pérsia,
As catacumbas do Egito,
A terra dos pigmeus,
As calcinhas de lycra das bonecas de Paris,
Ou, quem sabe,
Aos mictórios imundos,
Fedorentos de Istambul.
Talvez, nesses lugares encontre
Alguma coisa nova,
Menos desprezível que a Rua do Comércio,
Ou o Bar do Chopp,
Ou a praça dos Martírios,
(Nunca vi um nome tão feliz para uma praça
Que não significa absolutamente nada).
Cidade bonita é New York
Com milhares de pessoas a passarem pela Wall,
A avenida sem almas.
Cidade maravilhosa.
De lá podemos ver todos os cantos do mundo.
Se alguém acender um cigarro no Afeganistão,
De lá podemos sentir o cheiro
E dizer: marlboro, hollywood ou maconha.
E se alguém arrancar um cabaço
No Palácio de Buckingham,
De New York, pelo grito, saberemos
Dizer de qual foi a princesa.
Se algum burocrata soviético
For pego pela Perestroika
Sendo enrabado,
Saberemos a hora em que ele irá para a Sibéria,
Se estivermos em York.
Até mesmo no Japão
Se alguém engolir um computador
E cagar um tolete eletrônico,
De New saberemos o modelo,
Tanto do Japonês
Quanto do sistema eletrônico.
Minha alma, sem dúvida,
Quero dizer, minha nova alma,
Comprarei em New York.

*Publicado originalmente no site 082 Notícias (https://082noticias.com/2020/02/29/poeta-compositor-e-boemio/)

4 Comments on Paulo Renault, poeta, compositor e boêmio

  1. Irreverente ao extremo.
    ” Maceió Cidade Aberta ” de Paulo Felinni

  2. marcus (vagareza )maceio // 8 de junho de 2020 em 22:54 //

    foi meu parceiro em uma,música,(E DIZIAM COISAS DO MEU PAIS )na época censurada pelo regime militar “nossa indepencia para nunca mais depender de berros para nunca mais”

  3. Ticianeli // 9 de junho de 2020 em 09:15 //

    Marcus, essa música foi gravada depois?

  4. Foi meu colega de classe no Colégio Benedito de Moraes (2º Grau). Já naquele tempo, adolescente, não dispensava a cervejinha nas sextas a tarde – tardes alegres, quantas lembranças boas.

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