O Praieiro Alagoano

Publicado no Diário de Pernambuco de 28 de junho de 1935, do livro População de Alagoas

Jangadeiros na Praia da Avenida em Maceió

Moreno Brandão

O praieiro alagoano, que se ocupa em poucos misteres, dos quais o mais seguido é a pesca, é um tipo contraditório, de complicado feitio psicológico.

Até mesmo, ao contrário do sucede geralmente com o sertanejo, o seu físico não deixa de ter acentuadas divergências com o físico do vizinho.

Jangadeiros na Praia da Avenida, em Maceió

No meio dessa gente, a par de uma pessoa alva com todos os característicos peculiares à raça caucases, surge outra, representante perfeita da raça etiópica.

No seu modo de viver ele se mostra, com grande incongruência, volúvel e paciente, desprecatado do futuro, amigo do deboche, brigão e insóbrio no que diz respeito a bebidas alcoólicas.

A vida marítima não o empolga cabalmente, de modo a criar nele uma nova personalidade.

Parece, à primeira vista, que Alagoas, tendo o décimo lugar entre os Estados de mais extenso litoral, deveria, com S. Catarina, dar às atividades da profissão de marinheiro um contingente enorme de indivíduos. E, se assim não acontece, é porque não temos nem um número considerável de angras, baias, golfos e portos, nem temos à vista um bom número de ilhas isoladas, ou constituídas em arquipélago.

A pesca, não obstante, centraliza a atividade dos praieiros e dá ensejo, em certas épocas do ano, a feitos de incrível temeridade.

Se a colheita de peixes não dependesse de circunstâncias meramente eventuais e se fizesse de acordo com certo ritmo, o praieiro tornar-se-ia previdente, por saber a quantas andava. Mas não é assim. Muitas vezes a embarcação em que exercita a sua tarefa fica em risco de soçobrar, porque os peixes afluem para ela em número inumerável.

De outras feitas se passam dias e dias sem que pesque um só vivente, consoante o termo empregado pela gíria dos que vivem da haliêutica.

Jangadeiros na Praia da Avenida, em Maceió, com o Cais do Porto ao fundo

A necessidade de conhecer o tempo que sobrevirá dentro de poucas horas, os torna conhecedores de noções práticas de meteorologia. Muito conhecidos lhe são os fatos concernentes às marés, sobre os quais tratam com um conhecimento de causa superior ao de muitas pessoas que têm maior grau de cultura.

Se a ictiologia aguça a inteligência e faz criadora e fecunda, tal não se passa em nossas praias, onde não surgem revelações dadas por meninos supranormais.

Quanto aos adultos nunca deixam de se mostrar brancos e indiferentes às coisas da inteligência. Sob esse ponto de vista é muito mais apreciável o matuto ou o sertanejo. A ambos o Estado deve canções, quadras, frases de espírito, anedotas, réplicas, lendas, dicções, etc., que vem opulentando maravilhosamente o nosso folclore.

Não se salientando pelas conquistas da inteligência, nem pelas iniciativas largas, generosas e ousadas, o praieiro se torna saliente pela ausência do préstimo e pela agressividade.

Quem viaja pelo sertão e sente a doçura velutínea da hospitalidade dos habitantes dessa garagem, fica surpreendido ao ver o egoísmo quintessenciado do habitante da marinha.

Este, muitas vezes, recua ao viajor do obséquio mais insignificante, e, por uma perversidade deplorável, diversas ocasiões, dá resposta erradas em solução a perguntas que lhes são feitas sobre roteiro que deve ser seguido por quem anda ali em viagem.

Intemperamente, por hábito adquirido para se preservar das intempéries, o praieiro, sob a ação dos vapores etílicos, entrega-se com frequência a rixas com resultados funestos.

No meio dos desmandos de sua vida o morador das praias, pescador, trepador ou plantador de coqueiros, saveirista, pequeno negociante, preza pouco os vínculos da família e se desquita da consorte com uma volubilidade pasmosa.

O resultado dessas reiteradas infidelidades é que nas classes proletárias do Estado vai se generalizando, num crescendo assustador, a poligamia.

Há quem explique essa deplorável desmoralização como resultante da ictiofagia, em virtude da ação do fósforo acarretado pelo peixe para o organismo humano alimentado por ele.

E semelhante gênero de alimentação que dá a razão da prolificidade extrema dos casais praianos.

Os elementos resultantes dessa prolificidade parecem dirigidos ao mesmo destino precário de seus genitores, fadados às mesmas profissões dos pais, orientados nos mesmos propósitos, saturados dos mesmos princípios.

Nenhum deles ostenta desígnios mais elevados, nenhum se exime às contingências de uma vida precária aproximada da miséria, nenhum visa posição de maior relevo.

Jangadeiros da Praia da Pajuçara em Maceió

Nasceram pescadores, saveiristas, vendedores de peixes ou pombeiros, desfrutadores de palmeiras, pequenos negociantes, viveram quase sempre num rancho coberto de palhas, e às vezes, também murado de palha, e ali estarão até o fim de uma existência sem o largo horizonte das aspirações.

Alternarão a abundância de uma semana com a pobreza extrema da outra.

Entregar-se-ão a uma vida sexual de perturbadora intensidade.

Não lhes despontará no cérebro obtuso a menor noção de economia previdente, de que se julgam desobrigados, porque a terra é pródiga e farta.

Não saberão nunca o que é civismo, conhecendo apenas os interesses, prazeres e rixas do campanário, onde moram, atingidos, não raro de impaludismo e verminoses, vergando sem o mais débil protesto, às perseguições a que são votados os proletários numa terra de cativeiro e prepotência diabólica.

O sentimento religioso poderia confortar aqueles que têm por habitat as nossas lindas praias. Mas a religião deles não lhes serve de regra moral, porque está inçada de vergonhosa superstições.

Deixe um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*