O meio geográfico do açúcar em Alagoas

Engenhoca de rapadura em Água Branca em 1921

Manuel Diégues Jr.

*Publicado na revista Brasil Açucareiro de setembro de 1945.

Pode-se admitir que partiu de três focos iniciais o povoamento do território alagoano. Um assentou no norte e teve Porto Calvo como núcleo de irradiação. O segundo situa-se no centro do litoral e se desenvolveu em torno das lagoas, que deram nome ao povoado inicial: Alagoas ou Alagoa do Sul e Alagoa do Norte. Prolongou-se pelo vale do Mundaú, a cujas margens se lançaram os fundamentos da economia local: os engenhos de açúcar. O terceiro foco situou-se ao sul; Penedo é o seu centro de expansão.

Um quarto foco, complementar daqueles três primeiros, surge já nos meados do século XVII, e seu aparecimento se deve à luta contra os Palmares, que determina a expansão do povoamento para o interior. Vencidos os quilombos do Zumbi, os vencedores localizam suas moradas nas terras conquistadas, distribuídas então em sesmarias aos conquistadores. Começa daí o povoamento do interior; expande-se a dilatação territorial. Completa-se a estruturação geográfico-social de Alagoas.

Parte esta expansão de Atalaia, núcleo do quarto foco de povoamento. Dos fins do século XVII para princípios do seguinte são concedidas as sesmarias na região. Na segunda metade do século XVIII (1764) recebe Atalaia os atributos de vila, que se seguem ao título eclesiástico de paróquia (1763). É a quarta vila de Alagoas; e a décima segunda freguesia.

Penedo e o rio São Francisco. Fotografia de Marc Ferrez em 1875 ou 1876

O povoamento dos três primeiros núcleos inicia-se nos últimos decênios do século XVI. Nas primeiras décadas do século seguinte, e ao iniciar-se o domínio batavo, está perfeitamente estabilizado; alicerça-se em bases sólidas, que são, do ponto de vista econômico, a agricultura da cana de açúcar no norte e no centro litorâneo, os campos de pecuária, no sul. Nos começos do século XVII são sedes de freguesias os três povoados iniciais: Porto Calvo, Alagoa do Sul e Penedo. Na terceira década do século são elevados à categoria de vila.

Eclesiástica e politicamente têm sua organização assegurada. De cada ponto nuclear se vai irradiando o povoamento à vizinhança. Novas freguesias são criadas: Santa Luzia do Norte e São Miguel nas Alagoas; Camaragibe e São Bento em Porto Calvo; Poxim e Traipu em Penedo. Povoados surgem paralelamente à vida dos núcleos fundamentais. A cana de açúcar assegura a prosperidade econômica pela fundação de engenhos. Cria-se uma sociedade em fundamentos estáveis.

Do ponto de vista geográfico pode-se caracterizar estes núcleos pela influência do seu principal acidente; acidente, no caso dos três núcleos do litoral, principalmente hidrográfico, por isso que o seu elemento é a água: rios ou lagoas. Podemos distribuir o litoral alagoano em três regiões: a região dos quatro rios, que é a do norte, presidida pela presença dos rios Manguaba, Camaragibe, Santo Antônio Grande e Tatuamunha, a que se juntam outros rios menores: o São Bento, o Maragogi, o Comandatuba, o Mocaitá, o Tapamunde. Depois a região das grandes lagoas, onde se destacam as lagoas do Norte ou Mundaú, e a do Sul ou Manguaba; finalmente, a região são-franciscana, presidida pelo São Francisco, cujo centro, Penedo, foi o ponto de irradiação do seu povoamento, quer dilatando-se para o norte, quer penetrando o sertão.

Na região dos quatro rios que foi a sesmaria de Cristóvão Lins e Rodrigo de Barros Pimentel, pois os dois dividiram o primitivo feudo do primeiro em 1608, os rios Manguaba, Camaragibe, Santo Antônio Grande e Tatuamunha, afora os pequenos, constituem o ponto de referência na concessão das sesmarias, na fixação dos limites das doações feitas, na caracterização dos engenhos levantados, cujos nomes muitas vezes são colhidos no do rio à cuja margem se construíam as fábricas de açúcar.

Os rios Paraíba e Mundaú são os elementos referidos no povoamento da região das grandes lagoas, como seriam depois no da região palmarina. Eles e as lagoas do Norte e do Sul. A colonização se fez acompanhando o curso das águas. A sesmaria de Diogo Soares baseia-se na boca da lagoa Manguaba; a de Manuel Antônio Duro iria para o sertão até entestar o rio Mundaú, ao despejar na lagoa do Norte. Limitada pela lagoa do Norte e pelo rio Santo Antônio Mirim é feita a concessão a Miguel Gonçalves Vieira. Para o sul, o rio São Miguel é referido na sesmaria dos Moura Castro.

Porto Calvo no tempo da invasão holandesa

Na região são-franciscana é o grande rio da unidade nacional o distribuidor do povoamento; as distâncias se fixam em torno do São Francisco, ou do Piauí, ou do Coruripe, ou do Panema, e assim se vai estendendo para o sertão, margeando o curso do grande rio, e ao se alastrar para o norte, costeando o Atlântico, até encontrar as concessões territoriais de Diogo Soares da Cunha, é fixando-se em nome de rios ou de lagoas o Poxim, o São Miguel, a Jiquiá, que se faz a distribuição do povoamento.

Na região palmarina, aquela que começou seu desbravamento com a jornada contra os quilombos negros dos Palmares, quilombos que se estendiam por uma larga área de terra e influíam na vida das outras regiões de Porto Calvo, das Alagoas, de Penedo as concessões que advieram com a vitória de Bernardo Vieira de Melo e de Domingos Jorge Velho, baseiam-se em rios: o Paraíba, o Mundaú, o Parangaba. Partindo de Atalaia vai se estendendo aos hoje [1945] municípios de União, de Assembleia, de Anadia.

De modo que podemos admitir, e com razão, que a irradiação do povoamento no segundo foco — o das lagoas — partiu de dois pontos: um, na lagoa do Norte, margeando o rio Mundaú; outro, na lagoa do Sul, costeando o Paraíba. É em derredor das águas dos rios, fixando-se nas suas ribeiras, aproveitando a riqueza dos seus vales, que se vai desenvolvendo a colonização de Alagoas, baseada na cultura da cana de açúcar, através da construção de engenhos.

Não foram os rios grandes, mas os pequenos, assinalou Gilberto Freire (1), os amigos do colonizador no Brasil; foi na colaboração dos rios pequenos que o homem pôde desenvolver o seu trabalho econômico. E, em particular, na da cana de açúcar foi que a agricultura colonial encontrou nos rios o melhor elemento para colaborar no seu desenvolvimento.

Os rios não eram somente os vales férteis, através de cujas margens os canaviais gostosamente se estendiam, como se estendem ainda hoje; eram também os caminhos, por onde as canoas ou as barcaças navegavam, fazendo o comércio do açúcar. E até as próprias barcaças se construíam tendo como referência de tamanho o número de sacos ou de caixas de açúcar que pudessem conduzir.

São rios, porém, que quando se inquietam, desbragam-se em estragos, causando ruínas, destruindo canaviais, acabando com as plantações. Rios sem nenhum respeito ao trabalho humano. Uma vez, em meados do século XIX, o São Francisco encheu que arruinou os canaviais, destruiu o engenho Correnteza (2); mas dir-se-á: é o São Francisco. Sucede, entretanto, que os pequenos não são menos desbragados, nem menos violentos.

De uma notícia de jornal pode-se ver o que fizeram o Mundaú, o Paraíba e o Subaúma, que, consideravelmente cheios, “hão produzido grandes destruições em plantações de canas, mandiocas e outras lavouras”. E registrava o noticiário: “muitos engenhos de açúcar prestes a moer e outros já moendo acham-se paralisados e a espera de que melhore o tempo” (3). Apesar disso, é sempre o rio pequeno, rio colaborador e amigo do colonizador, o centro geográfico do sistema econômico presidido pela cana de açúcar.

Engenho Patrocínio em Atalaia, 1924

De modo que as sesmarias concedidas em território alagoano encontraram no elemento. geográfico seu principal fator de fixação; e também foram encontrar na fisionomia da terra, na nomenclatura das águas e das florestas — os nomes de rios, os nomes de árvores, o próprio nome de mata — a caracterização dos núcleos de povoamento criado. O batismo dos engenhos, dos povoados, uns e outros mais tarde evoluindo e, às vezes, transformando-se em cidades dos nossos dias, encontrou farto manancial no elemento geográfico, na sugestão da água. Cochoeira, Mundaú, Riachão, Pratagi, São Miguel, Jiquiá, Camaragibe, Santo Antônio Grande, Olhos d’Água, abundante este não apenas em engenhos mas em localidades também, são nomes que encontraram inspiração na geografia local o rio, o riacho, as quedas d’água. Outros foram buscar seu nome nos motivos da terra — Pau Amarelo, Boca da Mata, Angelim, Matogrosso, Junco, Barro-Branco, Campo Verde, Tabocal, Gravatá, Ingazeira.

Era natural que a mata inspirasse nomes de engenhos. Estes se ergueram em Alagoas justamente nas terras dominadas pela mata; pelas árvores de sucupira, de pau-amarelo, de peroba, de pau-brasil, de jatobá, de angelim. As casas-grandes, as casas-de-engenho, as capelas se levantaram com muito sacrifício de árvores grandes e frondosas, cuja madeira foi empregada nos caibros, nas armações de casa, nos altares, nos pilares.

Do que eram as matas de Alagoas, há dois documentos importantes: duas cartas-relatórios do Ouvidor José de Mendonça de Matos Moreira, que foi Conservador das Matas de Alagoas, cargo único existente no Brasil criado por sugestão sua, quando então se propôs a executar os respectivos encargos (4). A minudência da descrição nos deixa ver a extensão que tinham as nossas matas; léguas e mais léguas de florestas, tanto pelo litoral como para o sertão, tanto de frente como de fundo.

Além disso, fica-se sabendo que já nos fins do século XVIII, utilizam-se árvores entre a lagoa Jiquiá e o rio São Miguel para construção de navios mercantis. Nelas é que “se provê toda a marinha mercantil da Bahia, depois da proibição das matas de Palmares”; nos seus portos adiantava constroem muitas embarcações, e na época em que o Ouvidor escrevia estavam sendo construídas sete ou oito.

Das matas dos Palmares, “as famosas e bem conhecidas matas dos Palmares, tanto pela fertilidade delas como pela extraordinária grandeza de suas madeiras“, como das matas de Santo Antônio Grande e de Camaragibe, falava o Ouvidor cheio de entusiasmo. Entusiasmo que arrefecia o seu bocado, quando se referia à destruição feita pelos muitos roçados e pelo muito fogo.

Verifica-se que é na área açucareira onde mais sensível se encontra esta destruição. Não eram somente as árvores derrubadas para as construções de navios; os roçados e os fogos eram provenientes das atividades dos engenhos. A cana de açúcar obrigava a derrubada das matas; as exigências da cultura da cana e as necessidades da industrialização reclamavam a invasão das matas. Além das construções, o consumo de lenha pedia a destruição das árvores.

O próprio Ouvidor achava que os senhores de engenho deviam ser obrigados a conservar as matas, principalmente aquelas madeiras de boas qualidades; sinal evidente de que eles não as conservavam. Admitia mesmo o Ouvidor Mendonça que alguns engenhos estavam em decadência, pela destruição das matas, o que acarretava também a falta de lenha para os seus cozimentos. Mas não escondia ele que eram os engenhos os destruidores das matas; os devoradores das madeiras, dos paus-de-lei, das árvores das suas sesmamarias, das vizinhanças dos rios do Camaragibe, por exemplo, em cujas margens muitos roçados têm destruído o que existia de arvoredo.

Criança alimentando uma moenda de engenho

Foi, entretanto, no meio de uma mata densa, de árvores formidáveis, de madeiras excelentes, que se constituíram os blocos iniciais da colonização de Alagoas. Feita esta colonização, sempre nas proximidades da água, também se deparou com as matas. E foi aí que começou a erguer-se a civilização açucareira de Alagoas.

Em cada um dos núcleos iniciais da colonização alagoana, quer o que partiu dos engenhos de Cristóvão Lins em torno dos rios do norte, quer o que saiu dos engenhos de Diogo Soares e Miguel Gonçalves Vieira, em derredor das lagoas e dos rios Mundaú e Paraíba, quer ainda o que veio das fazendas são-franciscanas nascidas em volta do arraial fortificado que foi o fundamento de Penedo, quer, finalmente, o que brotou do estabelecimento dos paulistas e dos grupos alagoanos e pernambucanos nas terras outrora de negros comandados por Zumbi; em cada um desses núcleos fixou-se um bloco social, cuja base assentou na formação e desenvolvimento da família muitas vezes entroncando-se em vários ramos; famílias que se espalharam pelos engenhos, caracterizando-se quase sempre pelo nome da propriedade rural, marco em que se baseou a formação da sociedade alagoana.

A família foi, desde o começo da colonização brasileira, a unidade produtiva; o grande fator mesmo da colonização, destacou Gilberto Freire (5). É capital e é centro político; constituiu-se em aristocracia e fixou as bases da sociedade nacional. Coube à família, na organização social brasileira, constituir-se não apenas a unidade étnica, mas ainda, e principalmente, o centro de produção, o núcleo cultural, o bloco político.

Entrelaçam-se família e engenho em tais condições que muitas vezes o nome da propriedade incorpora-se ao do chefe da família. Quando não aparece apenas no tratamento comum, é o próprio proprietário que vai para os jornais anunciar que a partir daquela data seu nome será outro; este outro é apenas o acréscimo do nome do engenho ao seu nome próprio e de família. Casos como este encontramos alguns em coleções de jornais do século XIX.

No primeiro núcleo de povoamento — o do Norte, Porto Calvo — e nos dois focos do segundo — os das margens das lagoas — é em torno da economia açucareira que se processa o seu desenvolvimento. É em derredor dos engenhos e das famílias dos senhores de engenho — os Lins, Wanderley, Acioli, Barros Pimentel, Botelho, Soares, Bezerra, Calheiros, Gomes de Melo, Carvalho — que se forma a sociedade alagoana, cujos fundamentos encontramos nos primitivos povoadores, os que vieram nos fins do século XVI e nos princípios do seguinte. É daí que parte a história não somente do engenho de açúcar nas Alagoas, mas também a da própria sociedade alagoana; o que quer dizer a história mesma das Alagoas, unida como está a sua vida à existência dos banguês.

É no desenvolvimento da agricultura da cana de açúcar que assenta a organização de cada um desses núcleos fundamentais do povoamento de Alagoas. É através da economia açucareira que se expande a colonização do território alagoano.

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(1) Casa Grande & Senzala, 4. ed., tomo I.

(2) Diário das Alagoas, n. 216, de 19-IX-860.

(3) Diário das Alagoas, n. 165 de 17-IX-858

(4) As matas das Alagoas. Providências acerca delas e sua descrição, in R. I. H. B., tomo XXII, 2.o trimestre de 1859; Relação das matas das Alagoas, etc., in R. I. A. P., vol. XIII, setembro de 1908. n. 73.

(5) Casa Grande & Senzala, cit.

1 Comentário on O meio geográfico do açúcar em Alagoas

  1. Claudio de Mendonça Ribeiro // 3 de janeiro de 2023 em 10:38 //

    Parabéns, prezado Ticianeli. E que o novo ano seja portador de renovadas esperanças em um mundo melhor, mais justo, fraterno e solidário.

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