O curioso caso do Príncipe do Brasil e do padre Eusébio Dias Laços de Lima

Quadro de Johann Moritz Rugendas

O nome do padre Eusébio Dias Laços de Lima começou a circular na corte portuguesa a partir de 1715, quando a Gazeta de Lisboa publicou reportagem sobre seus feitos no Brasil em texto assinado por Joseph Freyre de Monterroyo Mascarenhas, redator do impresso.

Segundo pesquisa de José Cristian Góes, da Universidade Federal de Sergipe (Da urgência da memória sobre a imprensa: o caso das gazetas do padre Eusébio), o redator “apresenta uma minuciosa narrativa, repleta de detalhes, sobre a presença dos índios nos sertões, carregando nas tintas sobre a descrição de seus perigos e ferocidades, da sua ação contra o avanço da cruz e da espada do Império português no Brasil”.

Em resumo, identificava os índios orizes como obstáculos para o completo domínio sobre as terras conquistadas e a consequente utilização dela para a criação de gado, exploração de minas, além da reação deles à escravidão.

Góes destaca que o texto de Joseph Mascarenhas “classifica os índios como profundos inimigos de Portugal, como seres ‘inconquistáveis’, sendo o único destino a guerra e o extermínio dos nativos”.

Foi diante dessas dificuldades no relacionamento com os índios que o padre Eusébio Dias Laços de Lima, pároco da Igreja de Nossa Senhora de Nazareth de Itapicuru de Cima, na Bahia, resolveu atuar catequizando-os para que, como cristãos, aceitassem a autoridade da Coroa portuguesa.

Na reportagem citada acima, sua ação é reconhecida e elogiada, destacando que o padre utilizou de muita habilidade para unificar as tribos e batizar os índios, permitindo o controle da região, prestado imensos serviços ao Império de Portugal no Brasil.

Mas quais foram as habilidades manejadas pelo padre?

Anchieta e Nóbrega na cabana de Pindobuçu, pintura de Benedito Calixto, 1920

A Gazeta de Lisboa esclarece que para conseguir aproximar-se dos índios o padre teria feito vários acordos com eles e com os colonos. Um deles reconhecia que os chefes nativos continuavam a “reinar” soberanamente sobre seus povos.

A reportagem, que tinha o longo título “Os orizes conquistados – notícia da conversa dos indômitos Orizes-Procazes [procazes é sinônimo de indômitos], povos bárbaros e guerreiros do Sertão do Brasil, novamente reduzidos à Santa Fé Católica e a obediência da Coroa Portuguesa”, revela que a campanha do padre Eusébio garantiu a presença do Império uma área antes inconquistável, com o batismo “de 3.700 pessoas, das quais 1.800 eram homens de armas, 1.900 mulheres, velhos e crianças”.

Herói ou embusteiro?

Um ano depois, soube-se por outra fonte que o padre tinha enviado requerimento à corte do rei João V, O Magnânimo, informando destes mesmos feitos, principalmente o de ter conseguido a “paz e conversão dos índios orizes-procazes, gentio de corso, os quais não tinham sido nunca conquistados fazendo grandes hostilidades aos vassalos de Vossa Majestade”.

Narra o padre que, as suas custas, organizou uma expedição com 50 homens e entrou “pelas brenhas” (montanhas de Nhumará e Cassucá na Bahia) onde habitavam (caminhou durante 40 dias), conduzindo em sua companhia um filho do “principal” deles, que havia resgatado dos “tapuias mansos, cabis, que o tinham para matar”, levando-o para Itapicuru de Cima, onde o ensinou português e o batizou com o nome de Miguel. Foi usado como instrumento para “reduzir” seu pai e toda a sua “populosa nação” à religião católica.

Enumera ainda que 3.700 índios estavam batizados e obedientes à monarquia e sugere que o Rei tome os índios sob a proteção real, lhes garantindo a posse das suas terras.

Para comprovar o que informava, anexou uma justificativa reconhecida pelo ouvidor geral do cível da Bahia detalhando suas ações de apaziguamento dos índios e conversão deles à fé cristã.

Encerra o requerimento solicitando que, em reconhecimento pelos seus feitos, fosse nomeado pároco e administrador da povoação indígena, passando a receber a “côngrua” (recursos financeiros) para seu sustento e para a condução da multidão de almas. Pediu ainda que seu irmão fosse nomeado capitão-mor e que o rei lhe “fizesse [ao irmão] mercê do hábito de Cristo, com cinquenta mil réis de tença efetivos”.

Com tantas valorizações aos feitos e pedidos de recompensa, o Conselho Ultramarino (cuidava das finanças e administração das áreas ultramar de Portugal, incluindo o Brasil) desconfiou do relato das conversões e resolveu investigar o padre Eusébio, registrando essa pretensão em documento de 26 de novembro de 1716.

A congregação solicitou então a Pedro Antonio de Meneses Noronha de Albuquerque, “Marquês de Angeja, vice-rei e capitão geral do Estado do Brasil”, que verificasse a narrativa do padre.

Como o vice-rei não estava disposto a ir até Itapicuru de Cima e tendo “notícia de que se achavam na cidade da Bahia pessoas antigas e de suposição que tinham assistido naqueles sertões trinta, quarenta e mais anos, os mandara vir à secretaria daquele Estado e tirar pelo secretário dele um informe sobre o que a mesma ordem relatava…”. Entre elas, o prestigiado em Salvador capitão Pedro Barbosa Leal.

As testemunhas ouvidas declararam que todas as informações prestadas pelo religioso eram falsas, um embuste com o objetivo de enganar o rei.

O Conselho Ultramarino, de posse do relatório dessa consulta, avaliou que “este clérigo é um grande mentiroso e embusteiro, por tal está convencido pelas testemunhas e atestações e que agora remetia o vice-rei, e o que mais era que não só mentira a Vossa Majestade, mas também enganara o povo imprimindo em gazetas [Gazeta de Lisboa, por exemplo] os seus embustes e cometera o crime de falsidade, usando de testemunhas falsas”.

Solicitou ainda que “seja asperamente castigado para que sirva de exemplo (…) esta ousadia e falsidade era digna de um exemplar castigo”. O documento indica que o castigo “pertence ao juízo eclesiástico”, que deveria ser informado sobre as peripécias do padre.

Mesmo já tendo opinião formada sobre o religioso, o Conselho decidiu também averiguar a autenticidade de provas apresentadas pelo padre Eusébio no cartório de Gaspar Lobo da Cunha, em 8 de abril de 1715, na vila do Lagarto. Para isso expediu ordem para o ouvidor geral de Sergipe de El-Rei.

Ele tinha anexado depoimentos de índios batizados e de moradores da povoação comprovando suas histórias.

Os índios, de Jean Baptiste Debret

O Príncipe do Brasil

Sabendo que além de não ter seus pedidos atendidos, passara a ser para a Coroa um embusteiro merecedor de duros castigos, padre Eusébio Dias Laços de Lima iniciou uma verdadeira campanha contra o Império português e por quase duas décadas ampliou suas ações para além de Itapicuru em Sergipe, passando a percorrer Alagoas, Pernambuco e Bahia numa cruzada mal explicada.

Quem denunciou essas andanças ao rei foi Vasco Fernandes de Cesar de Menezes, o Conde Sabugosa. Era o quarto vice-Rei do Brasil (seu período de governador-geral se estendeu de 23 de novembro de 1720 até 11 de maio de 1735).

Sabugosa enviou cartas ao soberano em 5 de julho e em 2 de outubro de 1733, via o Conselho Ultramarino, informando que tivera notícia “de um moço aventureiro que andara na Capitania das Alagoas, intitulando-se Príncipe do Brasil reconhecendo-o muitos daqueles moradores por tal e venerando-o, fazendo com ele graves despesas e repartindo o dito aventureiro com os sequazes títulos de Condes e Marqueses, sendo um dos principais motores desta máquina um célebre e decantado clérigo, chamado Eusébio Dias Laços, sujeito de mau procedimento e fabricador de uma patente falsa do posto de Coronel da Capitania de Sergipe de El-Rei, assinada por Vossa Majestade, com a qual servira muitos anos seu tio Manuel Curvelo e o dito Vice-rei refere o que nesta matéria tinha obrado, mandando passar ordens circulares para haver de ser preso o dito aventureiro, em qualquer parte onde fosse achado”.

A acusação contra o padre sobre a patente indevida partiu de uma devassa realizada em 18 de novembro de 1724 contra o então coronel Manuel Curvelo de Mendonça, denunciado por patente falsificada. Em sua defesa, Manuel Curvelo alegou ter recebido a patente do padre Eusébio Dias, seu parente, sem duvidar da sua autenticidade. A partir de então, o religioso passou a ser procurado para prestar esclarecimentos.

A prisão do Príncipe do Brasil ocorreu ainda em 1733, considerando que em 12 de novembro daquele ano uma correspondência do Vice-rei do Brasil ao Conselho Ultramarino encaminhava uma cópia da carta do Governador de Pernambuco, Duarte Sodré Pereira, com o relato do interrogatório a que foi submetido.

O Vice-rei encontrou nas perguntas “muitos defeitos e nulidades” e recomendou realizar novas diligências “a fim de se castigar uma temeridade de tão graves e perniciosas consequências”.

Em Lisboa, o Procurador da Coroa, após tomar conhecimento das cartas do Vice-rei, orientou que seria importante interrogar o padre Eusébio e que “seria muito conveniente se prendesse e com a culpa seja remetido ao Bispo de Pernambuco para o sentenciar, tomando-se o cuidado de antes da aplicação do castigo “mandar-se ao Ouvidor das Alagoas tire devassa do que obrou e os seus agregados”. Essa orientação foi adotada por uma provisão do Conselho Ultramarino de 8 de julho de 1734.

No livro “Documentos Históricos – portarias, ordens, regimentos – 1734 a 1736 – Vol. LXXVI”, da Biblioteca Nacional, um registro nas páginas 66 e 67 revela a amplitude dessa devassa:

“Portaria para o carcereiro desta cidade – O carcereiro faça assento aos três presos que ultimamente vieram de Pernambuco com as declarações seguintes: João de Oliveira de Sousa preso à ordem do Desembargador Ouvidor Geral do Crime pela culpa que lhe resultou dos excessos que cometeu andando em companhia de Antonio de Loureiro Medeiros que foi Ouvidor do Ceará; o Alferes Francisco de Sousa Barcelar e Francisco Dias, soldado que foi do terço de Olinda, presos à minha ordem por se acharem culpados na devassa que tirou o Ouvidor das Alagoas contra o intitulado Príncipe do Brasil, e das pessoas que o reconheceram por tal. Bahia e março 2 de 1735. Rubrica”.

A Corte acusava o padre e o Príncipe de pretenderem implantar um império independente nos sertões da Bahia, Sergipe e Alagoas. A imputação se dava por eles reconhecerem reinos e príncipes indígenas, além de concederem títulos nobiliárquicos a colonos e índios e de terem distribuído terras para os moradores, passando a liderar uma enorme legião de fiéis. Outro crime atribuído ao padre foi o de imprimir clandestinamente e distribuir panfletos com suas pregações.

Príncipe e o Padre foram condenados no julgamento em Recife, mesmo tendo este último apresentando testemunhas, cartas e documentos em sua defesa.

O Príncipe dos Orizes (ou do Brasil) foi mandado para Portugal em 2 de abril de 1735 e não se teve mais notícias dele e nem se sabe se chegou a Lisboa.

Sobre o padre Eusébio Dias Laços de Lima, o desconhecimento é maior: não se sabe qual foi a sua punição e o seu destino após o julgamento.

Jesuítas catequizando os índios

Pesquisa de Jorge Victor de Araújo Souza, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, publicada com o título “UMA “FAKE NEWS” SETECENTISTA? INVESTIGAÇÃO A RESPEITO DA “CONVERSÃO DOS ÍNDIOS ORIZES” NOS SERTÕES DA BAHIA (C.1710-C.1730)”, revela a origem familiar do padre Eusébio.

“No Arquivo Nacional da Torre do Tombo há o vestígio mais detalhado que encontramos sobre a vida do padre Eusébio Dias, graças a um pedido que ele fez para ocupar o ofício de notário. A documentação, de 22 de maio de 1724, é uma diligência da habilitação feita pelo Tribunal do Santo Ofício. Para o Brigadeiro da freguesia de Nossa Senhora de Nazareth, na Bahia, foram pedidas informações sobre a ascendência familiar do padre, e sobre a sua reputação na região de Itapicuru de Cima, considerada sertão”.

“Na ocasião, foram consultados oito homens “brancos cristãos velhos dignos de crédito e estimação” pelo tempo em que viviam na região (uma média de trinta anos). Disseram eles, que padre Eusébio, natural daquela freguesia, era filho legítimo do Capitão Antônio Dias Lassos e de Inez de Oliveira”.

“Seu pai fora vaqueiro de gados e rebanhos, e tivera o posto de Capitão de Ordenança de uma companhia daqueles sertões. Por parte materna, seu avô era Simeão Correa de Lima casado com Maria de Oliveira de Lima“.

“As testemunhas não conheciam os avós paternos, chamados André Dias Lassos e Izabel de Almeida. Garantiam a “limpeza de sangue” por via materna do dito padre, entretanto, do pai ‘sempre ouviram dizer‘ que era de Maragogipe, e que descendia da “raça de cristão novo”.

Sobre a “vida e costumes” do padre, informaram que não fora casado, não tivera filho algum, e nem possuía bens temporais, era pobre.

“Entretanto, elas sabiam de algo do passado que manchava a sua reputação. Disseram que o padre Eusébio andou fugido da freguesia, embrenhado no sertão, pois era procurado pela justiça “por causa de mercês que pediu a sua Majestade por uns serviços que se apresentou com documentos menos verdadeiros fabricados por ele mesmo”. E o que mais sabiam “estas antigas pessoas das mais autorizadas” daquela freguesia? Sabiam que o padre Eusébio “fora o dizer que conquistara exclusiva a Santa Fé Católica uma imensidade de gentio bravo a sua custa, sendo tudo ou quase tudo fábula”.

“As testemunhas ainda disseram que ele jamais poderia ocupar o ofício de notário porque ludibriara os padres Francisco Esteves Valadares e Manuel de Brito, ambos vindos de Portugal. Padre Eusébio fora testamenteiro dos dois padres e, com a ajuda de seu tio, o Vigário Geraldo Correia de Lima, teria ficado com a herança deles, constituída de escravos e de gado. Segundo as fontes, os legatários legítimos não teriam encontrado mais nada do que fora deixado de herança”.

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