Inglês na chuva

Rua do Comércio e a loja de Manoel Mendes no nº 115, onde posteriormente foi o Bilhar do Commercio

Texto publicado no jornal maceioense O Orbe de 7 de outubro de 1898.

Por desgraça para os negociantes de bebidas em nossa pobre pátria, nem todos os ingleses pertencem a essa bela sociedade que tem na Inglaterra o nome de blue ribbon.

E digo por desgraça, porque muitas vezes o inglês bebe e não paga e quando tem vontade de fazê-lo é com um farthing por qualquer bebida cujo valor é 2$000 ou mais, daí as lutas em que, se o inglês mostra superioridade sobre o brasileiro na troca de socos, esfria e muda de cores ao ver a facilidade com que os nossos esguios compatriotas manejam as tradicionais bicudas que fizeram na Capital Federal a imortalidade do célebre partido Sanhassú e diante das luzentes folhas de aço os biffes julgam prudente resguardar a pele e batem em retirada.

Porém não foi assim no domingo que um inglês tripulante da canhoneira inglesa Beagle, até então surta [ancorada] em nosso porto, mostrou-nos que um inglês na chuva é pouco menos que um chinês embriagado pelo ópio.

Mas narremos o fato em sua simplicidade, que bem vale a pena em vista dos cômicos incidentes que a ele se prendem.

Eram 6 horas da tarde, o Bilhar do Commercio de propriedade do nosso amigo Pedro Araújo regurgitava de concorrentes, uns jogavam bilhar, outros divertiam-se na pinga; súbito entra no aludido Bilhar do Commercio um robusto e espadaúdo inglês, trajando a marujo de guerra e com os distintivos da Beagle; tomando assento em uma das mesas destinadas a bebida, pediu na sua meia língua um trago de Whiskey.

Bilhar do Comércio na Rua do Comércio em Maceió

Satisfeito o pedido, o inglês quis beber beer e mais beer, deram-lhe, depois pediu brandy, satisfizeram-no ainda. Chegou enfim o momento do ajuste de contas. O inglês, que até então havia estado risonho, atrapalhou-se um pouco achando aquela cobrança inoportuna porque pretendia ir mais adiante pelo mesmo caminho…

Em todo caso, tirou o chapéu e procurou-lhe nos fundos alguma coisa com que compensar as delícias de grogg. A custo retirou um nikel e entregou-o ao Pedro. — Só? Perguntou o nosso amigo bestificado diante da forma como o inglês queria pagar-lhe as bebidas. — Yes, respondeu o inglês. — It is all right in England ist not so deer. Bring me Whiskey.

Pedro suava por todos os poros do corpo sem saber o que respondesse ao brutamonte que tão cruelmente o havia bigodeado. Resolveu-se enfim, para evitar conflito diante da triste emergência em que se achava, de não poder receber a importância que o inglês, de fato lhe devia, resolveu-se, dizíamos nós, a abrir um crédito ilimitado para o inglês, porém a ideia do nosso amigo Pedro não foi precisamente acertada, porque o maldito biff enxugava como uma esponja e minutos depois o vermelho filho da velha Albion punha tudo em polvorosa no Bilhar do Commercio; dançava e cantava possuído de doida alegria que dá o alcoolismo em seu primeiro período.

Algumas das pessoas presentes, botaram-se ao inglês no sentido de acalmá-lo, porém o bruto, já inteiramente bêbado sem prejuízo da sua força hercúlea e agilidade extraordinária, com alguns dos célebres passos do constrangimento, afastou os nossos patrícios; alguns dentre eles porém, conseguiram com muito agrado levar o bruto para fora do Bilhar, e deixaram-no a alguma distância, isso porém foi inútil, porque momentos depois ouviam-se vigorosas carreiras na rua do Commercio.

Era ainda o inglês, que depois de romper a roupa de uma mulher em frente ao beco do Moeda, disparou numa vertiginosa carreira em perseguição ao farmacêutico Arthur Duarte, que apavorado fugia de boca aberta com receio de cair nas unhas do inglês, qual corsa ligeira que corre impetuosamente adiante do perdigueiro

O moço fugia como o vento, voando nas suas cumpridas pernas, porém o inglês não corria menos e não sabemos qual seria a sorte do novel farmacêutico, apesar de suas velozes pernas de ema, se um corajoso criado do nosso amigo Pedro Araújo não se atravessa-se a meio da distância que separava a raposa do lobo e abaixando-se num dado momento em frente ao perseguidor, que tropeçou e caiu redondamente sobre as pedras da rua. Então o farmacêutico Arthur aproveitou o ensejo de muscar-se a toda força de suas velozes pernas.

Por esse tempo, o inglês levantava-se lépido e furioso por ter perdido a sua cumprida, mas esguia presa, e entrava novamente no Bilhar do Commercio, ameaçando de reduzir a cacos tudo que estivesse ao alcance de suas formidáveis manoplas.

O nosso amigo Narciso, que lá estava, foi convidado a cortar um pouco de língua com o inglês, porém o bruto não queria parlamento, havia imaginado uma guerra de extermínio contra as garrafas do Pedro. Diante dessa terrível expectativa, o nosso amigo reuniu os seus elementos e preparou-se para resistir à fúria britânica.

Súbito, porém, o inglês sacou de uma navalha e fez uns passos mágicos que deslumbrou aos circunstantes, desanimando-os para a resistência.

Nesse momento chegava à porta do Bilhar um exército de soldados de Polícia que o farmacêutico Arthur Duarte enviara para subjugar o valente marujo que o havia feito estafar-se tanto, medindo-se com ele em uma carreira impetuosa e veloz.

Mas os soldados amavam demasiado a pele para entregarem-se assim sem mais aquela aos golpes do façanhudo inglês, que ria-se escarnecedoramente nas bochechas da Força.

Felizmente, em um momento de descuido, o marujo deixou cair a navalha, que foi agilmente apanhada pelo nosso amigo Pedro Araújo; desarmado o inglês, ainda assim a Força não teve coragem de prendê-lo!

Com bons modos e um pouco de energia, os cidadãos Clemente Silveira e Lobão conseguiram levar dali o inglês, quando ele já havia quebrado algumas garrafas; deixaram o animal à grande distância do Bilhar e entregue à sua colossal bebedeira.

Aparecendo depois no Bilhar do Commercio o alferes Gonçallo Pedra, do batalhão policial, propôs-se a ir prender o inglês e ato contínuo foi procurá-lo, seguido de muitos soldados de polícia.

Por esse tempo, o marujo estacava junto a escada que dá acesso para o edifício do Correio [atual prédio da Delegacia do Ministério da Fazenda, em frente à Catedral]. Encontrado pelo alferes Gonçallo e seus soldados, foi o inglês intimado a render-se. Respondeu a intimação com sonora gargalhada e pôs-se imediatamente em guarda, disposto a resistir a toda soldadesca que o rodeava.

Administração dos Correios em Alagoas, na Praça D. Pedro II, atual Delegacia do Ministério da Fazenda

Então o alferes Gonçallo endireitou-se, temperou a garganta, sacou a espada e marchou direto ao inglês. Este, porém, sem se intimidar, levantou o punho e formou enorme murro que ameaçava destruir o nariz do alferes Gonçallo. Travou-se então interessante diálogo entre ambos; dizia o inglês:

— I am not afraid, I will break yours jaw-bones with two brodakins (textual).

O alferez Gonçallo dizia:

— Seu mister inglês, estou lhe tratando muito bem, mas se você me descarrega um murro, corto-lhe em pedaços com a espada (textual).

O nosso amigo Pedro Araújo, que estava presente, mostrava debalde os galões do oficial, o inglês porém, ria-se a bom rir. Never mind, dizia ele. O nosso Pedro, desapontado, invocava as lições que recebera da língua inglesa e formava frases nessa ordem: inglish Jones, caminha glò Jaraguá shipps espera você, drinks non bones Maceió.

O marujo ria-se sem entender patavina e o Pedro insistia ainda em forma de súplica: caminha Jones! Dimhs non mais, shipps géo, deixa você terro sururu.

O inglês pouco entendeu dessa nova algasovia e conservou-se fincado entre a parede e a escada do Correio.

Se ali estivesse na ocasião o nosso amigo Zé da Vosta, resolveria a questão com quatro palavras bastante inglesas e, lembrando do discurso preparado para o capitão Norfolk, do Retribution, diria logo ao inglês: God save Victoria, mister Tandstichor oeh fosfor Jonkopings, to be os not to be good sailor man of war. E o marujo ouvindo aquele apelo aos seus brios ter-se-ia ido embora em procura da Beagle e no outro dia o jornal A Tribuna, pela pena de Illusio — o doutor de … boubagepublicaria na íntegra o discurso do nosso simpático geólogo.

Porém Zé da Vosta lá não estava e a linguagem de Pedro era demasiada mista para ser compreendida pelo mata-menes que cada vez se esquentava mais.

A situação era intolerável. As tentativas sucediam-se para se apoderarem daquele hercúleo John Bull e ele resistindo sempre.

Eram já dez horas da noite quando, por infelicidade do inglês, passou em frente ao local das suas proezas, um soldado do 33º batalhão. Convidado para ver se ele sozinho conseguia aquilo que muitos soldados de polícia não puderam, o valente soldado não se fez de rogado e atirando-se resolutamente ao inglês esmurrou-o fortemente, fazendo-o cair de bruços sobre as lajes da calçada. Oh! Devil’s man, disse o inglês, you aer very cross for me!

Estava enfim vencido o brutamonte e fácil foi então subjugá-lo e levarem-no aos trambolhões e debaixo de uma saraivada de socos até meio caminho de Jaraguá.

Aqui termino a longa história das proezas que na terra alagoana fez o valente marujo da Beagle.

Uma convicção, porém, ficou-me dos fatos relatados. É que o punhado de inválidos que constitui a polícia desta terra é sempre alguma coisa superior que a polícia de Londres.

Ao sr. alferes Gonçallo Pedra, pretendo pedir permissão para parar pasmado perante polícia progressista provada paciência patenteada público.

E então?

Mandaime

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