Chico Barbeiro, o poeta que queria ser Francisco Lima

Félix Lima Júnior e os tipos populares de Maceió. Publicado no Boletim da Comissão Catarinense de Folclore, nº 23 e 24 de 1957 e 58, mas escrito em maio de 1956, em Maceió

Praça D. Rosa da Fonseca, antes de 1909 era conhecida como Praça do Livramento

Félix Lima Júnior

Faleceu no Recife, onde residia, terminando pobre e melancolicamente os seus dias, Francisco da Cunha Lima, o Chico Barbeiro, tipo popular e conhecidíssimo em Maceió, nos últimos anos do século passado e nas duas primeiras décadas deste século.

Ótimo profissional, ganhou a alcunha, com que só se incomodou muito tarde, em 1916 mais ou menos, isso por injunções de família, pois duas suas filhas solteiras ficavam irritadas quando eram apontadas como as “filhas do Chico Barbeiro”.

Salão Hygienico na Rua do Comércio, 132, de Luiz de Medeiros Barboza

Deixou a profissão, passando a fabricar gravatas e bonés, fez uma força danada, queixou-se amargamente, pediu aos amigos e conhecidos para chamá-lo Francisco Lima, “que ele tinha nome”, mas tudo inutilmente.

Ficou sendo mesmo o Chico Barbeiro… E por ironia da sorte, por uma dessas coisas do destino, tendo se mudado para a capital pernambucana, onde seus negócios fracassaram, voltou, cheio de amargura, certamente, a cortar cabelo e a fazer barba, confirmando o rifão de que, quem nasce para cangalha…

Uma de suas filhas, Maura, foi, no seu tempo, uma das moças mais bonitas de Maceió, sem favor algum.

Homem pobre e modesto, muito bom e trabalhador, era uma das mais alegres, pilhéricas e engraçadas criaturas que conheci, sendo muito estimado e das mais populares figuras da cidade no começo do século.

Contava uma história a um, uma anedota a outro, ridicularizava toda gente, e vivia bem, satisfeito, sem que pessoa alguma se lembrasse de zangar-se com ele. E se zangasse só teria a perder…

A primeira vez que vi Chico Barbeiro — lembro-me! — foi numa das noites da inesquecível festa do Natal, em Bebedouro, em 1910, mais ou menos. Estava vestido de mouro, com blusa vermelha, calças brancas, gorro azul, botas pretas, de cavalaria, e trazia na mão direita um espadagão.

Comandava, por obra e graça do Major Bonifácio, um fortim turco, erguido na praça de Santo Antônio, no oitão da casa do velho Olímpio Ether, para combater os marujos da nau Catarineta, que ancorara um pouco adiante.

Natal do Bonifácio em Bebedouro no ano de 1916. Foto da revista O Malho

No fim do ano, em novembro, mandava ele imprimir e vender suas célebres emboladas. Era um sucesso, só ultrapassado, muitos anos depois, pelo “O Bacuráo“, jornal humorístico de que todos se lembram e que circulou nesta cidade em 1924 a 1928.

Manoel Diégues Júnior, “O banguê nas Alagoas“, escreveu, à página 256:

“Dentro do mesmo assunto são os versos que apareceram numa das célebres emboladas do Chico Barbeiro, de edições anuais, nos primeiros anos do século atual. Estes folhetos que alcançaram grande sucesso nas Alagoas, constituem um dos mais vivos documentários para a reconstituição da vida social e política do Estado no começo do século XX. Aproveitando o motivo musical do “Tatu no mato“, figuram os seguintes versos de emboladas, referentes a propriedades, em particular do vale do Mundaú, e circunvizinhanças, inclusive parte do vale do Paraíba:

Rêgo da Mata, Fernão Velho, Carrapato,
Santa Cruz, engenho Gato, Burarema, Conceição,
Ponta Grossa, São Miguel, Paripueira,
No engenho das Frecheiras seu Aguiar é o bichão.

Páo Amarelo, Cachoeira, Grujaú,
Engenho Urucú, Mataraca, Gavião.
Dr. Alfredo é quem manda na Satuba.
No engenho da Uruba Tiburcinho dá lição.

Mais restrito a engenhos do vale do Mundaú, inclusive o Riachão, da família Oiticica, e o Utinga, da família Leão, hoje Usina Central, é esta quadra também do Chico Barbeiro, nas suas emboladas do Natal de 1903:

Na Satuba quem governa é. seu Mendonça.
Na Utinga quem governa é seu Leão,
Ah! seu Abas, ah! seu Hermes, ah! seu Ulf!
Dona Santa é quem governa o Riachão!

Aparecem nestas quadras alguns nomes conhecidos da vida alagoana, Dr. Alfredo é o dr. Alfredo Rêgo, ilustre higienista e educador, que durante algum tempo foi gerente da usina Wanderley, de propriedade do Estado; Tiburcinho é o comendador Tibúrcio de Carvalho, proprietário da então usina Santa Ismênia, hoje usina Uruba, primitivamente engenho Uruba; Leão é o comendador Leão, proprietário da usina Leão”.

E eu acrescento mais umas informações às do Diégues: Dona Santa, que mandava no Riachão (aliás Riachão do Pitanga, engenho banguê de fogo morto, há muitos anos) era dona Francisca Oiticica da Rosa Calheiros, genitora do dr. Alfredo Elias da Rosa Oiticica, que ainda reside na propriedade aludida.

Mataraca é um engenho em Atalaia, hoje pertencente aos herdeiros do coronel Nonô — José Tomaz da Silva Nonô, falecido mais ou menos em 1948; Conceição era outro banguê, no então município de Santa Luzia do Norte, hoje Rio Largo, pertencente ao dr. Antônio Gomes Nogueira; Pau Amarelo, engenho no aludido município, pertencente a Manoel Rodrigues Calheiros Lins. Nele vem de ser montada a usina Santa Clotilde, da família Oiticica (oficialmente da Cooperativa dos plantadores de cana do vale do Mundaú). Gurjaú de baixo e Gurjaú de cima (não sei a qual dos dois se referia Chico Barbeiro) eram dois engenhos no Pilar, pertencentes o primeiro ao major João Pedro de Morais e segundo ao dr. Joaquim Ayres da Silva Costa.

Usina Leão em Rio Largo

Chico Barbeiro, em 1901, ao iniciar-se o século XX, tinha seu estabelecimento à rua do Livramento. Transferiu-o depois para a rua do Comércio onde está hoje a Casa Edson, e, posteriormente, em 1917, para os baixos de um velho sobrado na mesma rua, onde está presentemente a Casa Lages. Aí esteve até 1923 quando se mudou para o Recife.

Era também Conhecido por Sururu de botinas, por não usar outra espécie de calçado.

Em 8 de outubro de 1952, Durval Coelho Normande, chefe da Normande & Cia., de Maceió, que residiu, menino, em União dos Palmares, deu-me cópia de parte de uma das emboladas do Chico Barbeiro e que conservava de memória:

Crise política — Suspensão do Secretário

O Secretário se zangou com seu Paes Pinto
oh lelê mas eu não minto, foi pro mode a oposição!
O pinto novo já cantava como galo
por via do regalo levou sua suspensão!

Eita! Lá de riba o Lelê vem me dizer:
fala caboclo para saber dessa questão.
Coronel velho. Senador do nosso Estado.
É o homem abalizado que governa a União.

Eita! Disse Euclides na chegada,
eu não quero embrulhada com o Lelê da União.
Aí meus amigos vocês tenham paciência,
com meu chefe de influência ninguém faz oposição!

Paes Pinto era o coronel Jacintho Paes Pinto da Silva, Inspetor do Tesouro do Estado e coronel comandante superior da Guarda Nacional do Estado de Alagoas. Era uma espécie de Pinheiro Machado mirim, dominando completamente a política local, de 1900 a 1912 mais ou menos. O Secretário da Fazenda era o engenheiro Antônio Guedes Nogueira, de destacada família alagoana. Já faleceu.

Lelê era o coronel Presciliano Sarmento, grande proprietário agrícola e influente político em União, neste Estado. O Secretário era como escrevi, o dr. Antônio Guedes Nogueira. Governava o Estado o Bacharel Joaquim Paulo Vieira Malta, que sucedera seu irmão, dr. Euclides Vieira Malta.

Além dos versos que registrei, Chico Barbeiro improvisou outros, ainda a propósito da desinteligência referida:

Suspende, mano, suspende,
Suspende essa suspensão!
Suspende o pinto e o galo,
Capote, peru e pavão!

É que o Cel. Paes Pinto, com seu imenso prestígio, conseguira afinal, fosse tornada sem efeito a suspensão…

Disseram-se que Chico Barbeiro era analfabeto. Seus primeiros versos ele os ditava a uma pessoa, que ia escrevendo. Já maior de 20 anos é que aprendeu a ler, por sugestão do grande saudoso poeta conterrâneo Aristheu de Andrade, que muito o apreciava e talvez fosse seu freguês na barbearia.

Imitando Pierre Loti, brilhante oficial da marinha de guerra francesa e renomado escritor, que no estio de 1876, deixando câmara do “La Courrone”, navio em que servia, foi trabalhar, certa noite, como palhaço do circo Etrusco, em Toulon, sendo muito aplaudido, Chico Barbeiro também se fez palhaço de um circo, nesta capital, armado na praça da Cadeia, no princípio deste século.

Reconhecido pelo público, que o aplaudiu entusiasticamente cantou ele, ao violão, uma quadrinhas pilheriando com o seu colega de ofício, José Ponciano dos Santos, barbeiro conhecido e estimado:

O Ponciano barbeiro
Toca flauta em si-bemol.
Tem muita força no peito
Pois tomou Humanitol!

Humanitol era uma fórmula do farmacêutico Antônio José Duarte, proprietário da Farmácia Fidelidade, à rua do Comércio, recomendado para gripe, tuberculose e doenças do peito.

Muitas outras emboladas pilheriando com o comerciante Antônio Brasileiro, Major Acioli, Capitão Pinheiro, ambos da Polícia do Estados, Dr. Sampaio Marques, médico que foi Prefeito de Maceió, e outras figuras de destaque da Capital alagoanas poderão ser lidas no meu trabalho “Presente do Natal“, publicado em Maceió, em 21 e 28 de dezembro de 1952, no Jornal de Alagoas.

Mais baixo do que alto, de cor clara, forte, gordo, muito alegre e brincalhão, andava gingando e era geralmente estimado.

Rua do Comércio em Maceió no início do século XX

Leobino Silva explorava uma tabacaria na rua do Comércio e resolveu mudar de ramo, montando um caldo de cana, onde vendia também especial “caninha” fabricada em alambique de barro, que era servida com cajus e tira-gosto. Chico Barbeiro, no fim do ano, não o esqueceu:

Seu Leobino que montou sua engenhoca,
De beiju de tapioca, caldo de cana e caju,
Tem certa droga que queima a boca da gente:
Quem a bebe de repente faz mais roda que peru!

Era Intendente (Prefeito) municipal de Maceió, na primeira década deste século, o dr. Manoel Sampaio Marques, que faleceu em 1951. Foi focalizado numa das emboladas:

O Intendente “seu” Doutô Sampaio Marques
Só dá vinho Labarraque prá tomá nas refeição
Passa receita, toma nota no caderno
Cura todo mal interno sem fazer operação…

Os três primeiros fonógrafos que apareceram na capital alagoana, logo depois da proclamação da República causaram sensação e foram colocados nos cafés Suisso, Colombo e High-life. Juntava gente ansiosa de conhecer a novidade. Chico Barbeiro comentou-a:

Lá no Colombo, no High-life, no Suisso,
Diz o povo tem feitiço, tem um bicho de falar.
Me disse um moço que se chama gramofone,
Só parece um lobis-home lá nas matas do Pilar!

*O título original é “Chico Barbeiro”.

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