Carnaval do meu tempo

Carros Alegóricos e troças na Av. da Paz no início do século XX. Foto de Luiz Lavenère

Por De Araújo Costa

Carnaval. A rua do Comércio está uma verdadeira loucura. Carros de capotas arreadas passam com moças e rapazes fantasiados, cantando canções carnavalescas:

O teu cabelo não nega, mulata,
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega, mulata,
Eu quero o teu amor…”

Tábua de Pirulito ornamentada para o carnaval no anos 50 em Maceió

Serpentinas entrelaçam-se, nos automóveis, espalhando-se, aos montes, pelas ruas, dando um colorido bizarro ao ambiente. As fantasias mais caras, mais ricas são apresentadas pelos que fazem o corso. Confetes são jogados em todas as direções, cobrindo o calçamento de continhas multicores.

O carro do Consul Ezequiel Pereira vem vindo, artisticamente, decorado. Atrás dele o da família Nobre, o da família Peixoto, o da família Lobo, da Fábrica Alexandria. O Milu Ferrário, de pé, no capuz do seu carro, dança, muito animado, ao som do batuque do frevo. O Lelo Brasileiro, o Crispim da Boia têm as suas baratas cobertas de serpentinas.

Carros alegóricos passam pelo comércio, emprestando uma beleza encantadora ao carnaval de rua. Os não foliões fazem alas, de lado a lado da rua, para apreciarem o espetáculo.

O major Bonifácio, não obstante a sua idade provecta, vem, fervendo, com o seu bloco de foliões. Traz pendurado na ponteira de sua bengala, o seu chapéu de palhinha, que se agita no ar, como uma flama. O velho vem suado, esbaforido, rodopiando como um rapazola à frente do estandarte do seu animado bloco, o Bloco das Caboclinhas. A multidão rompe em aplausos e vivas ao velho Bonifácio da Silveira, a expressão mais legítima de folião alagoano.

Família Nogueira no corso na Rua do Sol, Maceió, em 1936

Daí a pouco a agitação aumenta e os sons de batuque se avolumam. Ouvem-se estrídulos de clarins. São os clubes mais queridos da cidade que vêm dos bairros: o Cavaleiro dos Montes, o Bota-Fora e o Cara-Dura. Arrastam, com eles, uma verdadeira multidão. O Gonguila, inveterado folião, vem comandando o seu clube.

As suas marchas eletrizam a massa. Todo mundo entra no frevo. Gritos roucos, histéricos, saem de gargantas ressequidas. Cavalheiros e senhoras respeitáveis jogam fora as conveniências e mexem no meio da rua, numa alegria esfuziante. Todos esquecem suas dores, suas mágoas, seus problemas. Mergulham na vaga humana, que cresce e se agiganta cada vez mais. O povo forma um todo homogêneo, transformando-se numa massa colossal, movediça.

Um cheiro de suor empesta o ambiente. Cheiro de negro, de mulata, de branco, provocando excitações e náuseas. Mulheres excitadas, na frente dos homens, sacodem suas ancas volumosas, rotundas, roçando-lhes as virilhas, em movimentos brutais, violentos, desordenados.

E todo mundo “marca o seu cartão“, no aperto gostoso, frenético, libidinoso… Só o instinto prevalece. Essa besta-fera, que se encontrava agrilhoada durante todo o ano, rompe o ergástulo social que a prendia, o freio das atitudes hipócritas, das mentiras convencionais, e salta, pinota, urra no meio da rua, feliz por se encontrar liberta.

Nenhuma ação tem lógica, nenhum gesto tem sentido. Estão todos loucos. Homens idosos vestem-se, ridiculamente, de mulheres e saracoteiam como verdadeiras odaliscas de serralho. Garotas desnudas, em movimentos obscenos agridem a virilidade masculina. Parece que assistimos à dissolução dos costumes, ao esboroamento das instituições, tais são os desregramentos, a licenciosidade, nesses três dias de loucuras incessantes.

……………..

Carnaval da Rua do Comércio em 1952

Meia noite. A rua do Comércio e adjacências estão mergulhadas em relativo silêncio. Aqui e ali, amontoados de serpentinas e confetes, destroços de uma batalha que foi travada algumas horas antes. Raros carros passam conduzindo grupos de fantasiados, que se destinam aos clubes. Um calhambeque, caindo aos pedaços, conduz uns malandros de caras empoadas, que cantam:

Ô… Ô…
Nós somos mesmo do amor…
Ciganinha frajola
Entra aqui no cordão
Que a fuzarca consola
As mágoas que a gente
Traz no coração…

Já começaram os bailes. A “Fênix“, “Regatas“, “União Portuguesa” e “Aliados” estão à cunha. Todo mundo se diverte, se agita, se esbalda.

Volto para casa, pensando naquele desperdício enorme de dinheiro com lança-perfume, bebidas, serpentinas e confetes. Enquanto isso, inúmeras crianças dormem ao relento, nas calçadas, sem terem tido uma côdea de pão para alimentar o estômago vazio… Mundo errado. Cheio de paradoxos…

Ouço, ao longe, uma canção:

“Oh! jardineira porque estás tão triste,
O que foi que te aconteceu,
Foi a camélia que caiu do galho,
Deu dois suspiros e depois morreu”…

Os sons agitados e quentes de outras músicas me chegam aos ouvidos. Fecho o livro que estou lendo. Deito-me e adormeço, lentamente, ouvindo, ainda, uns pedaços de notas musicais que se adelgaçam e se infiltram pelas persianas do meu quarto.

*Publicado no livro Poeira do Meu Caminho, Maceió, 1981.

1 Comentário on Carnaval do meu tempo

  1. Perfeito.

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