Alagoas na caricatura brasileira

Publicado na revista Urupema, nº1, de dezembro de 2006

Jorge de Lima e Graciliano por Loredano

Enio Lins

Ao se fazer uma rápida visita aos melhores veículos e mais expressivos caricaturistas brasileiros de todos os tempos, encontrar-se-á uma excepcional presença de caras alagoanas nos principais cenários políticos ao longo da história do Brasil.

Para fugir às obviedades, como a extraordinária participação alagoana nas charges nas últimas décadas (em que têm participação usual rostos de Fernando Collor a Heloísa Helena, passando por Teotônio Vilela, pai e filho, Renan Calheiros e Aldo Rebelo), ainda nítida em nossas lembranças contemporâneas, podemos buscar imagens mais atrás, cascavilhando no fundo do baú da história impressa.

Para tornar a busca mais instigante, descartemos, nesta abordagem, personalidades atuantes nos últimos 50 anos. E daí, recuando no tempo a partir de meio século atrás, o que pode ser identificado como presença alagoana entre os brasileiros mais notáveis, dignos de serem caricaturados?

Não seriam inusitados os destaques de Collor, Teotônios, Renan, Heloísa, Aldo?

Não, de maneira alguma. Personalidades alagoanas sempre ocuparam lugar de grande destaque no topo da lista dos caricaturáveis. Alguns se mantêm vivos e atuantes pela via das caricaturas, mesmo depois de muitas décadas de encerrarem suas vidas materiais. Vejamos:

Jorge de Lima e Graciliano Ramos, por Loredano, em desenhos contemporâneos. Os dois gênios da língua portuguesa tiveram marcante participação nas lides políticas. Jorge foi vereador e presidente da Câmara Municipal do Rio de Janeiro e Graciliano, além de prefeito de Palmeira dos Índios, notabilizou-se como comunista militante (embora sua atuação partidária, na verdade, fosse apenas formal).

Góis Monteiro em dois traços: por Guevara e por Mendez. Pedro Aurélio, o filho mais conhecido de Dona Constança, pode ser reconhecido em sua evolução fisionômica desde os anos 1930 até a década de 1950, período no qual foi um dos mais expressivos e polêmicos líderes políticos-militares da história do Brasil.

Pontes de Miranda, na meia idade, fisionomia reflexiva captada por Andrés Guevara.

Aqui vale um parêntese para falar de Andrés Guevara, um dos nomes mais importantes para a renovação das artes gráficas brasileiras. Esse Guevara, antes do Che, foi um homem da América Latina. Teria nascido no interior do Paraguai, mas registrou-se como argentino, onde passou boa parte de sua juventude, depois se mudou para o Brasil, onde exerceu sua revolucionária atividade caricaturista. Ser desenhado por Guevara era um privilégio sem par, pois o mais cobiçado traço no Brasil, mesmo que quisesse, não disporia de tempo para se dedicar aos menos famosos. E, dentre as estrelas brasileiras (e internacionais) brindadas pelo talento excepcional deste artista transnacional, brilham muitos alagoanos.

Fernandes Lima em O Malho

Uma página inteira da prestigiosa revista “O Malho” foi dedicada, em abril de 1929, a um problema alagoano. Fernandes Lima (ex-governador e então senador), sofre com as cobranças por seu filho (Fernandes Lima Filho) estar sendo acusado de mandar matar o governador Costa Rego, seu ex-aliado que decidira voar em rota própria. O sicário contratado para a frustrada empreitada (graças ao barulho de gansos que “melaram” o atentado) foi preso no ato e depois, na cadeia, confessara tudo. Charge de Guevara.

Costa Rego, governador, senador (na época deste desenho) e definitivamente jornalista (morreu no batente, como chefe de redação do Correio da Manhã, no Rio de Janeiro), é aqui retratado por Guevara, seu colega de constelação entre os mais brilhantes nomes do jornalismo brasileiro no século 20.

Alto comando de A Manhã, um dos mais importantes jornais em toda história brasileira. A capa da edição comemorativa do primeiro aniversário, 19 de dezembro de 1927, trazia as caricaturas dos integrantes mais destacados de sua redação, escalados numa ordem hierárquica a partir do fundador, proprietário e diretor-chefe, o pernambucano Mário Rodrigues. O penúltimo personagem da primeira fila é Mário Filho, primogênito do dono da casa e também jornalista (tão expressivo que legou seu nome, Mário Filho, ao estádio do Maracanã, que seria inaugurado 23 anos depois deste desenho). [O aguerrido Mário (pai), exilado de sua terra natal por problemas políticos locais, gerou uma prole famosa; além de Mário Filho, Nelson Rodrigues foi outro rebento que se tornou um monstro sagrado no jornalismo e o mais estelar nome do teatro brasileiro, e Roberto, o caçula, teve interrompida sua carreira de artista gráfico num momento trágico, assassinado por uma senhora da alta sociedade carioca, madame Sílvia Thibau, como represália a cobertura dada pelo jornal dos Rodrigues ao rumoroso caso de desquite do casal Thibau].

Andrés Guevara, estrela do traço de A Manhã, caricatura a si mesmo no meio da página, tendo o cuidado de desenhar seu próprio cachorrinho de estimação no exato ponto central do quadro. E, como a ordem dos caricaturados é hierárquica (cabia a Mário Filho o oitavo lugar na linha de sucessão), devemos destacar o segundo (e poderoso) chefe na escala de comando desse inovador veículo de mídia impressa brasileira: Pedro Mota Lima, alagoano da Viçosa.

Um dos maiores jornalistas do Brasil, Mota Lima era comunista de carteirinha e continuou em destaque, anos depois, como editor de jornais engajados nas causas esquerdistas. Morreu na (então) Tchecoslováquia, exilado, em 1966.

 

Euclides Malta na revista O Gato de 1912

Esta caricatura, em rara policromia, representa o momento da deposição do então governador de Alagoas, Euclides Malta, em função da chamada “Política de Salvações” implementada pelo então presidente da República, o marechal Hermes da Fonseca.

[Gaúcho, o Hermes presidente era filho do alagoano Hermes da Fonseca, irmão de Deodoro, que, juntamente com toda família, teve de deixar o estado natal em função de uma fracassada rebelião dirigida pelo patriarca Manuel da Fonseca (que ousou se levantar contra o Império por não aceitar a designação de Maceió como capital da província das Alagoas, em 1839. Hermes, empossado presidente, destronou os governantes nordestinos que não lhes eram partidários (alguns apoiados pelo poderoso senador gaúcho Pinheiro Machado, cuja face aparece no escudo do derrotado). No lugar de Euclides, tido como potentado da oligarquia Malta, assumiu o coronel Clodoaldo da Fonseca, sobrinho do presidente Hermes e sobrinho-neto de Deodoro].

Deodoro e Vargas, em 1952, no traço de Théo

Deodoro da Fonseca é uma das figuras perenes da charge brasileira. Sua caricatura está presente desde o tempo do Império, passando logicamente pela proclamação da República, até estes tempos do século 21. Mormente o velho marechal é usado como símbolo positivo, representando na maioria das vezes a própria República.

Deodoro, em 1927, por Guevara

Deodoro e Floriano: charge com caricaturas sobre o primeiro governo republicano, 1890. Floriano, apesar de tão ou mais expressivo do que Deodoro, é pouco caricaturado (certamente pelas restrições à liberdade de imprensa, um subproduto lamentável dos tumultuados primeiros anos de implantação da República, nos quais a firmeza desse notável alagoano lhe rendeu a divisa de “Marechal de Ferro”).

Deodoro como Ministro da Guerra do Império, caricaturado por Ângelo Agostini, sempre de forma positiva. O italiano Agostini é um dos principais nomes no jornalismo brasileiro. Exímio caricaturista e litogravador, este italiano chegou ao Brasil em 1850, com apenas 16 anos de idade, mas já sabedor dos segredos de sua arte (havia estudado em Paris) e revolucionou a imprensa tupiniquim, possibilitando um salto adiante na técnica de gravação das pedras litográficas, na arte de desenhar caricaturas, charges e quadrinhos e na politização do enfoque jornalístico (foi um ardoroso defensor do fim da escravatura).

Além de Deodoro, o traço de Ângelo Agostini deixou registrado para a posteridade o destaque nacional de outros alagoanos. Dentre esses, foi seu freguês recorrente o Visconde de Sinimbu, o político alagoano que mais ocupou postos em nível nacional. Além de governar Alagoas e outras províncias, Sinimbu foi chefe de polícia da Capital Imperial (Rio) e ministro de várias pastas nos governos do 2°. Império, além do equivalente a primeiro-ministro (Sinimbu implementou o sistema de pesos e medidas que pôs o Brasil em sintonia com as normas modernas criadas desde a Revolução Francesa. A introdução do metro, do quilo e do litro gerou uma verdadeira rebelião reacionária do povão contra a novidade, conhecida como a Revolta Quebra-Quilos). Sinimbu, sem dúvida, é um dos brasileiros mais caricaturados em seu tempo.

João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu, o Visconde de Sinimbu, aqui no traço litográfico de Agostini, estrelou várias histórias em quadrinhos que eram charges detalhadas sobre as crises políticas dos gabinetes de governo do imperador Pedro 2°.

As legendas são em tipografia contemporânea reproduzindo, na ortografia brasileira de 1975, os textos originais (que ficaram mais difíceis de ler, em função de serem escritos em caligrafia cursiva e com a ortografia do século 19).

 

Novamente o Visconde de Sinimbu, aqui realçado por Agostini (veja detalhe) na posição mais alta dentro da coroa.

Morto em 1882, o alagoano Mello Moraes foi revivido em desenho de Agostini, feito em 1888, numa charge-história em quadrinhos que discorria sobre os episódios mais marcantes da luta pelo fim da escravatura. A ilustração em questão se referia a dura batalha pela aprovação da Lei do Ventre Livre, em 1871, que só pode ir a plenário da casa legislativa competente graças a um único voto decisivo, dado pelo deputado alagoano.

Alexandre Mello Moraes era médico, intelectual de grande visão (doou o acervo inicial, de dois mil livros, para a fundação da Biblioteca Pública de Alagoas, em 26 de junho de 1865) e foi um dos introdutores da homeopatia no Brasil. Quando esta sua caricatura póstuma foi publicada, seu filho, também conhecido como Mello Moraes, já era figura prestigiada no Rio (como editor competente) e o desenhista teve de colocar no voto, depois do “Sim”, a identificação “Mello Moraes, pai”.

Assim, mesmo de forma póstuma, alcançamos o ano de 1871 com alagoanos salientando-se dentre o primeiro escalão das estrelas nacionais merecedoras de serem caricaturadas pelos melhores profissionais desse ramo em seu tempo. Lembramos que a década de 1870 é o marco para um salto de qualidade na sátira gráfica no Brasil, em que o provincianismo e as querelas localizadas (como a retratada no caso da primeira charge, em 1837) passam para um segundo plano e a primazia nas páginas é conquistada pela crítica política mais aprofundada, buscando os temas mais candentes e de repercussão nacional e identificando os principais jogadores do tabuleiro de xadrez político nacional.

Certamente um estudo mais acurado, visitando fontes primárias (aqui só trabalhamos com fontes secundárias), encontrará mais e mais estrelas radiosas das Alagoas a brilhar no largo horizonte brasileiro.

Ênio Lins é jornalista e chargista. O texto é parte de uma conferência apresentada originalmente na Escola Superior da Magistratura de Alagoas e, depois, replicada no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas e na Academia Alagoana de Letras.

 

1 Comentário on Alagoas na caricatura brasileira

  1. ALVARO ALVES // 4 de novembro de 2019 em 22:01 //

    Parabéns pela clareza e informação do post. Gostei muito de ver membros da Família Fonseca (Família da Grandiosa Dona Rosa) na questão e também de outros personagens alagoanos. Como é rica esta terra, merece uma pesquisa aprofundada da participação de seus filhos na História do Brasil. Parabéns.

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