A lenda penedense de Anna Rebate

Publicado no jornal A Esquerda de 27 de julho de 1931, da série Lendas Sanfranciscanas sob o título de “Anna Rebate”

Rua Floriano Peixoto em Penedo no ano de 1922

Moreno Brandão

Anna da Hora, com uma grande lentidão de gestos, aparecia à janela fronteira à casa de Paulo Motta, quando a palestra habitual ia esmorecendo entre os afiliados de um clube de más línguas quotidianamente congregados ali.

A simples presença daquela solteirona, cuja beleza física, a virgindade, auxiliada pela garridice, ainda mantinha, bastou para suscitar um assunto à loquacidade proverbial do Philadelpho, o cronista dos escândalos passados outrora em Penedo.

Anna está ficando velha, disse.

Mas nenhum dos presentes adiantou palavra à convidativa afirmação do linguarudo.

O cavalheiro estava glacial naquela tarde amena, sobrevinda depois de uma manhã de espera invernia.

— Está ficando velha e, apesar de rica, não se casará nunca…

Nem a mais ligeira silaba permitia a Philadelpho a narração encetada.

O Epaminondas, excelente companheiro das murmurações usuais, levantou-se para retirar-se, outros o acompanharam, e o narrador sentiu desapontamento enorme. E, como para dar um derivativo à atividade de outras feitas dispendida em recontar, com imaginosos comentários, os casos de antanho, desfazia-se em acenos, mudava de posição, movimentava-se com frequência, olhava para diferentes pontos, volvendo sempre as vistas para a celibatária pensativa, debruçada à janela na hora vesperal do “Angelus”.

Junto dele outro companheiro, desses que passam como sombras impalpáveis por todos os lugares e são capazes de fazer parte de uma conspiração sem se comprometerem, ardia em desejos de ouvir a história, mas, prudentemente refreava a impaciência, soltando frases vagas destinadas a manter a conversação, até que ele recaísse no romance em que Anna da Hora figurava de heroína. E houve-se com tanta habilidade e sutileza que, em dado momento, Philadelpho começou:

— Vocês devem saber que em 1817 Alagoas esteve sob a jurisdição do Tribunal da Relação da Bahia.

A um gesto de assentimento dos ouvintes, prosseguiu:

— Pois bem. Em 1815 aqui chegou o mais belo tipo de homem que estas paragens louçãs já comtemplaram. Era um português de Trás-os-Montes chamado Manoel Bragança.

Embora viesse procurar fortuna em nossa terra e fosse extremamente pobre, foi muito bem acolhido aqui. Um patrício colocou-o no seu estabelecimento, onde revelou, desde logo, muita inteligência.

Visita do presidente da Província José Bento da Cunha Figueiredo Júnior a Penedo em 1869

Quando estava provido de umas duas andainas de fatos, começou o caixeiro a merecer as atenções das moças casadouras da vila. Todas o requestavam, cercavam-no de afetos e carinhos, disputavam-no como se Manoel Bragança fosse o mais invejável dos partidos.

Nenhuma dessas penedenses mereceu, porém, mais atenções do involuntário D. Juan do que Anna da Hora — linda moça de 16 anos em flor, alva com um rosto belíssimo, emoldurado por uma cabeleira espessa e negra, senhora de uns olhos chispantes e formas esculturais magníficas.

Órfã desde os três anos de idade, vivia sob a tutela de um homem feroz, verdadeiro Cérbero, vigilante e cioso de sua abastada pupila, destinada a desposar o filho do dono da casa a cuja sombra vivia a elegante moça.

Um domingo, numa das missas do convento, viram-se os dois jovens pela primeira vez e, daí em diante se ele a amava, ela fingia amá-lo.

Foi precisamente naquele domingo em que um frade de grande fama na vila, sentindo as antevisões da morte, pronunciou um penoso sermão de despedida ao povo desta terra. Todos choravam alarvemente. Só não choravam o peninsular êxul, nem a encantadora filha do S. Francisco em cujos olhos bailavam as confissões ardentes do amor.

Através de mil dificuldades e perigos, os dois namorados se viam, conversavam e planejavam o futuro, quando chegou aos ouvidos do tutor de Anna a notícia do namoro. Houve zanga, severas, reprimendas, a vigilância tornou-se ainda mais austera, porém não arrefeceu a paixão de Manoel Bragança.

Começaram, então, a insidiar-lhe a existência, pleitearam o seu desemprego, tramaram contra seus dias em várias emboscadas. Por felicidade o reinol saía sempre incólume e continuava, cos desprezo solene pela vida, a galantear a jovem de seus sonhos, festejando-a em noites de plenilúnio, com serenatas harmoniosas, em que cantava, com a doce inflexão portuguesa, lindas xácaras alusivas a seu amor, repassadas da nostalgia do voluntário desterro.

Ficou, por fim, ajustado entre ambos que Manoel Bragança raptaria Anna da Hora.

Vista do interior da cidade do Penedo olhando – se em direitura para o rio São Francisco […]; Marc Ferrez (Brazilian, 1843 – 1923); Penedo, Alagoas, Brazil; 1875 – 1876; Albumen silver print; 19.2 × 25.2 cm (7 9/16 × 9 15/16 in.); 86.XA.749.2.17

No dia aprazado, obtido o consentimento do patrão, o caixeiro dirigiu-se para a casa da brasileira, arrancou-a dali, e seguiu no rumo de S. Gonçalo. Ao passar pela porta do quartel das milícias, rufaram tambores, dando rebate do caso, a população sobressaltou-se, e, depressa, conheceu-se a causa do alarma, seguindo então um numeroso grupo ao socairo dos fugitivos.

Por cúmulo do infortúnio, o indivíduo encarregado de levar as alimárias, em que deviam montar o raptor e a raptada, deixou-as na rua de S. Gonçalo Garcia. Quando a multidão se aproximava de Manoel Bragança, Anna da Hora fingiu-se atacada por um vágado, o raptor amparou-a e ela começou a invectivá-lo dizendo que ia arrastada a contra gosto seu.

O português, nesse momento, parecia uma fera perseguida por uma matilha famulenta. Intimaram-lhe que se entregasse.

— Depois de morto, respondeu.

E, de espadim em punho, preparou-se para lutar.

A multidão não se julgava, porém, no dever de lhe afrontar a ira leonina. Estacava, enquanto Anna pedia socorro.

— Entregue a moça, disse, casará com ela, nada lhe sucederá.

Manoel Bragança relutava, perdoando à amante aquele momento de fraqueza.

Falaram-lhe então em palavra de honra e o cavalheiro cedeu ao que queriam, privando-se mesmo das armas que trazia. Anna foi abrigada em casa do comandante das máquinas, e Manoel Bragança, vilmente atraiçoado, foi preso.

Levou muito meses no cárcere, e, depois dos trâmites de um processo iníquo, remeteram-no para a Bahia para ser entregue à Relação.

Ao sair do porto, Bragança fez um gesto de soberano desprezo, que abrangeu toda essa terra numa solene maldição, e, quando do S. Francisco, avistava já a enseada de Sta. Isabel, o preso começou a bolçar vômitos incoercíveis. Julgaram-no enjoado. Enganaram-se: ferido pela ingratidão da noiva e pela traição dos homens, o português morria envenenado.

Desde então se formou o vazio em torno da mais formosa das penedenses, e nem mesmo o filho do tutor, um esturdio esmaniado, quis desposar Anna da Hora, conhecida desse tempo em diante pela alcunha de Anna Rebate.

O narrador calou-se e a noite caída de todo, prosseguia na rota inconsciente, surda às lágrimas dos homens, impassível diante de suas alegrias transitórias.

2 Comments on A lenda penedense de Anna Rebate

  1. História incrível. Parabéns!

  2. Que história linda!!!!

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