A abolição, suas causas e suas consequências

Palestra apresentada por Manoel Diégues Júnior em União dos Palmares no dia 13 de maio de 1938, cinquentenário da Abolição

Tronco aberto vindo da Ponte Grande para o Engenho Itamaracá em 1861. Acervo Jorge de Lima

Manuel Diégues Júnior

*Publicado no Diário de Pernambuco de 29 de maio de 1938. Texto de uma conferência apresentada em União dos Palmares, Alagoas, no dia 13 de maio daquele ano, lembrando o 50º aniversário da Abolição.

Estou profundamente agradecido ao honroso convite de comissão promotora das comemorações do cinquentenário da abolição em União, pela generosidade de associar o meu nome aos festejos aqui realizados. Esse agradecimento é tanto maior quanto muito sensibiliza a obscuridade em que tenho procurado viver, arrancando-me assim para vir a esta cidade falar sobre a abolição da escravatura.

E em nenhum ambiente pode ecoar melhor essa comemoração que sob os mesmos céus e sobre a mesma terra em que há mais de dois séculos os negros ergueram o seu primeiro brado de liberdade. É honroso para mim que o som das minhas palavras vibra no mesmo ar em que vibrou outrora o eco daquelas vozes que gritaram na serra da Barriga uma página admirável da nossa história. Muito vos agradeço a oportunidade tão feliz e a que sou tão grato.

Quero particularizar o meu agradecimento à bondade dos amigos aos quais devo o convite: o prefeito Mário Gomes de Barros, espírito brilhante e empreendedor, a quem me ligam laços de profunda admiração, admiração que rendo à sua inteligência e à sua fidalguia; e o dr. Raul Lima, jovem e ilustre promotor da comarca, talento dos mais interessantes e vivos na nossa geração, a quem não é preciso dizer a velha amizade que nos une, bem alicerçada e compreendida em cinco anos de curso acadêmico. Estendo ainda o meu agradecimento  à vós, minhas senhoras, pela fidalguia de vossa presença a essa reunião, e a vós, meus senhores, pelo prestígio do vosso comparecimento que eu faço não em meu nome somente, porque ele não seria bastante para atrai-vos, mas em nome dos negros escravos, que foram o principal motivo de vossa vinda aqui.

Manuel Diégues Júnior em 1964 durante evento em Buenos Aires

***

As causas da abolição

Os fatores que concorreram para a abolição vieram se avolumando no decorrer dos anos, fazendo com que a extinção da escravatura se positivasse antes mesmo de escrita em papel de lei, com as concessões de liberdade, com a compra de cartas de alforria. Modificando-se gradualmente as relações de produção, geraram-se outros elementos mais ou menos ponderáveis. A começar mesmo dos primeiros anos encontramos as fugas de negros como já uma consequência dessas relações, da luta social existente entre o senhor e o escravo, formando o desequilíbrio econômico que haveria de gerar, mais tarde, a decadência da agricultura açucareira. E quando no século passado outras consequências vieram juntar-se — extinção do tráfico, expansão comercial e surto industrial, imposição inglesa — acentuando-se ainda mais a modificação dessas relações na vida econômica brasileira, a abolição veio naturalmente, não como uma conquista de classe ou de partidos, mas como uma vitória da própria gente negra.

É essa uma tese que sempre me seduziu: a de que foram os próprios escravos que fizeram a abolição. O Parlamento era aquela ausência de ideias que todos conhecem. Os partidos não representavam ideologias; eram antes representações de famílias e de personalidades, como observara há pouco Sérgio Buarque de Hollanda. Nenhuma grande ideia eles tornaram realidade.

A campanha abolicionista, por exemplo, pregada com ardor por vezes liberais, como a de Nabuco, foi decretada por um ministério conservador — o de João Alfredo. A abolição foi por isso mesmo, antes que uma conquista de partido, uma vitória dos próprios escravos. Foram eles que fizeram a abolição pelo espírito de sacrifício, suportando os sofrimentos tremendos do cativeiro, abalando com a sua resignação os corações duros dos seus senhores, de homens meio-civilizados, com ares de viajados, em contato com outros centros.

Foram os próprios escravos que fizeram abolição, fugindo ora isoladamente, ora em casais, ora em massa, para formar sues núcleos de vida — os quilombos, longe das torturas, das gargalheiras, dos troncos, do anjinho, da má alimentação, da fedentina das senzalas. Foram os próprios escravos pela reação lenta, silenciosa, porém enérgica, contra o sistema de exploração da raça negra por uma minoria de gente a que não faltava o sinal de jenipapo [mancha nas nádegas ou na cintura indicativa de mestiçagem].

Mas o que acentuou a tendência para a abolição foi, sem dúvida, a modificação na técnica econômica, com os primeiros gemidos do aparelhamento industrial, quando se tornava necessário aumentar-se o número dos consumidores. A extinção do tráfico foi outro fator relevante. E contribuindo para mais apressar a solução do problema, a bandeira inglesa surge nos mares patrocinando a não escravidão.

A imposição da Inglaterra, na repressão ao comércio negreiro, cria maiores raízes para a causa abolicionista, tanto mais quanto a deficiência de gente acarreta a necessidade do trabalho livre.

Diante destes fatores, que se caracterizam na modificação do ritmo econômico, a abolição veio inevitável. Não foi uma vitória de partidos; foi uma conquista da própria raça negra, contribuindo para o desenvolvimento da nossa riqueza, ao regar, com o seu suor, a terra brasileira.

Em verdade, isso é o que foi a abolição, uma conquista da gente negra, pelo seu sofrimento, pela sua doçura, pelo muito que deram ao Brasil no seu cativeiro.

Como eram tratados os escravos

Foi assim como cativo que o negro entrou no Brasil. Foram buscá-lo na Guiné, em Moçambique, na Luanda. Descoberta a nova terra em 1500, somente trinta anos depois começaram os portugueses a colonizá-la. Mas encontraram a resistência do índio, já afeito ao clima da vida livre, sem jeito para a agricultura sedentária que o açúcar impunha. Através da carta de Duarte Coelho, documento mais positivo para nos informar da entrada dos primeiros negros no Brasil, compreende-se que foi a cultura da cana de açúcar que os reclamou; que pediu braços escravos para encher os engenhos do Recôncavo, de Olinda. A Bahia, Pernambuco, Maranhão, Rio de Janeiro foram os principais pontos de desembarque dos escravos; daí eram eles distribuídos pelo litoral brasileiro, sujeitando-se a um regime de trabalho onde não havia nada de conforto e de dedicação.

O que o negro fazia nos engenhos era ser um verdadeiro pé de boi. O eito comia-lhe as forças; quando acontecia parar a moenda ou querer enxugar o suor, o chicote do feitor arrancava-lhe as carnes, já tão escassas pela má alimentação da carne seca, do bacalhau, da farinha. Havia mesmo uma preferência acentuada pelos feitores portugueses, tanto assim que anúncios de jornal do século passado [XIX) muito referem essa procura pelos donos de engenho. Um diz assim:

“Precisa-se de um feitor para um Engenho distante da praça 4 léguas, preferindo-se Portugueses ainda mesmo sem prática” (D. de P., 28,7,1835). Sofrendo de senhores e feitores, os negros não tinham nada de carinho, nem de doçura no tratamento. Havia, sim, escravos em ambientes anti-higiênicos, em senzalas imundas, contraindo e alastrando moléstias, muitas incuráveis, mal alimentados, quase não se sustentando de pé.

Tráfico de escravos em navio negreiro, quadro de Rugendas de 1830

Para os índios o padre Anchieta, com aquela doçura e aquele jeito de fazer milagre, aconselhava que a melhor pregação era a “vara de ferro”. Pois essa “vara de ferro” não foi estranha aos negros.

Escravos com marcas de fogo, escravos com correntes ajustadas no pulso, no pescoço e no pé; escravos apanhando de chicote, de libando; escravos assinalados por esse variado material de suplício — desses escravos dão notícias os jornais. E havia ainda os negros calejados ou aleijados de carregar peso, sofrendo de erisipela, de beribéri, de inchação, quebrados, a pele nos ossos, os dentes podres, as pálpebras roídas de Sapiranga [conjuntivite]. Era o visconde de Santo Thyrso quem dizia que nos anúncios de jornal era onde melhor se encontrava a história da humanidade. Se é assim, através dos anúncios dos jornais do século passado [XIX], vamos encontrar toda a história de sofrimento da gente negra do Brasil, fossem como vendidos, fossem como postos em leilão ou alugados.

Mas esse sofrer não era nenhuma novidade; era uma continuação do que os negros suportavam desde sua saída dos portos africanos. O “damurixá” o seduzia; espécie de carnaval, horas em que se divertiam, ao som dos tabaques e animados pela luxúria, o “damurixá” era o jeito que os traficantes tinham mais fácil para apanhar os negros. Ou então os negreiros compravam os homens aos sobas ou ainda apanhavam os negros nas lutas entre tribos. E daí eram postos em porões sujos, infectos, aglomerados de tal maioria que os navios quase não suportavam. Diversos alvarás e cartas régias foram baixados, impedindo esse exagero. Uma delas, a carta régia de 20 de janeiro de 1719, dirigida ao governador geral de Pernambuco, dizia em certo trecho:

“Nos navios que do Porto de Loanda saem carregados de Escravos para os Portos desse Estado, iam muitos mais negros por alto de que é a sua arqueação, causa porque no mar morriam muitos, pois não lhe metiam mais água, nem mais mantimentos, que para aquela quantia de negros, em que navio arqueado”.  É o próprio rei quem confessa essa verdade do mau tratamento que suportavam os negros, com água e mantimentos para determinado número, quando eram em quantidade excessivamente maior. Mas isso não cessou, nem a providência real minorou a situação. Outro alvará de 24 de novembro de 1813 determinava medidas para que “os navios, que se empregarem no transporte dos negros, não hajam de receber maior número deles do que aquele que corresponder à proporção de cinco negros por cada duas toneladas; e essa proporção só terá lugar até a quantia de duzentas e uma toneladas”.

Desses navios vinham os negros para os “armazéns de escravos”, dos quais uma viajante inglesa, Mary Graham, nos deixou um desenho vivo. Visitando-os quando de sua passagem pelo Recife notou que apesar de estar pouco habitado ainda assim viu lá cerca de 50 meninos e meninas, com toda a aparência de moléstia e fome, devido à alimentação deficiente e longo confinamento em lugares insalubres e que estavam imiscuídos aos animais mais imundos. E outro viajante francês, Tollenare, encontrou os negros cobertos de pústulas, expostos nestes armazéns, onde chupavam roletas de cana no meio de todo aquele ambiente de imundície.

Desses armazéns assim descritos, iam os negros para as senzalas, depois de vendidos, examinados minuciosamente, apalpados. Estreitas e imundas as senzalas não tinham ar; com uma humidade doentia, insalubres, focos de doença de toda espécie, nelas os negros viviam. Numa como que síntese do que era o sofrimento da gente negra, na sua vinda como mercadoria para o Brasil. Tavares Bastos escreveu na décima das suas Cartas do Solitário:

“Os escravos da Costa d’África morriam em grande número durante o transporte, e eram também horrivelmente dizimados em terra pelas moléstias contraídas na viagem e por outros motivos”.

Quem os via assim sofrendo não imaginava a bondade que havia naquelas almas, nem poderia avaliar o quanto de útil se tornariam para o Brasil. Bondade e utilidade que estão ainda ao vivo nas páginas de nossa existência; naquele carinho com que acalentavam os ioiozinhos, naquela afeição com que se apegavam aos senhores, naquele interesse em lavrar as terras. Os gemidos que somente o eito ouvia nas horas de trabalho, se transformavam em cantos alegres nas danças das noites.

Muitos desses escravos eram tratados sem o interesse que mereciam. Eram considerados por certos senhores, apenas como mercadoria ou instrumento de trabalho: uma enxada mais cara ou um boi mais custoso. Havia outros, porém, que eram tratados com cuidados e que os senhores faziam um escarcéu medonho quando fugiam: as negras doceiras, os bons carregadores, as boas amas de leite. Os anúncios de jornal revelam o desespero de certos senhores quando perdiam uma prenda dessas, um desses negros preciosos, hábeis, completos. Com essas habilidades, por exemplo, reveladas num anúncio do Diário de Alagoas de 29 de abril de 1879 relativo a um escravo que fugira do padre João Baptista de Carvalho Daltro:

Sabe ler, ajuda missa, corta cabelo, é bom cozinheiro, copeiro, sapateiro, conversa bem, entende de ginástica, trabalha em trapézio, é bom pajem”.

Escravo da Mina Aouni em foto de Augusto Sthal, 1865

As fugas de escravos

Negro não tinha direito a nada; só havia deveres. Era-lhe vedado tudo. Cargo nenhum podia ocupar, mesmo quando livre. Mulher negra não podia usar fazenda boa, pois assim provocaria ofensas contra Nosso Senhor, como reza uma carta régia de 1709, o mesmo era privilégio de gente branca. Não podia andar de cadeirinha, nem de rede.

Castigo era permitido, moderadamente, mas nisso os senhores não obedeciam a lei. Negro fugido era marcado com a letra F, na espádua; se fugia pela segunda vez, encontrada a letra já marcada, era cortada uma orelha — eis o que determinava um alvará de 3 de março de 1741.

A reação negra estava muitas vezes no suicídio; ou se manifestava no banzo, estado psicológico que caracterizava, no negro, a lembrança de sua liberdade na terra natal. As insurreições eram constantes. No Recife, no Maranhão, na Bahia, no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul, em todos estes pontos e mais outros a história registra insurreições negras, frutos da reação do escravo contra o nível de vida a que eram sujeitos.

Constantemente, porém, era a fuga, recurso mais prático e mais rápido. Ela traduzia a denúncia evidente do que eles sofriam. Constituía também uma derivação do seu anseio de liberdade, do seu desejo de vida independente. Essas fugas se assinalavam constantemente. Às vezes era para escapar de um martírio, indo cair em mãos de outro dono; outras vezes era para ajuntar-se aos companheiros e irem formar quilombos.

Na região do São Francisco, na parte de Minas Gerais, a própria organização social, aliás de linhas bem semelhantes às que caracterizavam a organização do litoral contribuía para a fuga de escravos, como refere Diogo de Vasconcelos, ao estudar a conquista do rio-sem-história. Dessas fugas geraram-se quilombos, dentre eles o mais notável aquele que teve por cenário as terras de União na serra da Barriga, alastrando-se às terras de Viçosa.

Seria atentar contra a vossa dignidade e vosso patriotismo se eu me demorasse a explicar-vos o que foi esse quilombo e sua significação na história nacional. Eu trairia a minha própria consciência de alagoano se falasse aos meus conterrâneos sobre o episódio mais vigoroso na história brasileira, porque reflete o espírito de liberdade da nossa gente; episódio que todos vós deveis conhecer nos seus pormenores.

Palmares foi o primeiro grito de liberdade contra a escravização negra. Foi a manifestação mais viva do espírito democrático do nosso povo, formando na serra da Barriga a resistência contra o despotismo dos governantes. Ali se congregou um ideal: o de solidariedade e de fraternidade da nossa gente. Em Palmares se reuniram pretos e brancos, concretizando o anseio de independência da população colonial. E que grito admirável! Parece mesmo que os negros escolheram a propósito os altos de uma serra para que suas vozes fossem ouvidas por Deus, pedindo-lhes a liberdade do seu povo, que era o mesmo povo brasileiro já com sua consciência formada. Parece que eles queriam se aproximar do céu para exclamar aquilo que mais tarde Castro Alves poria em versos:

“Deus, oh! Deus, onde estás que não respondes
Em que mundo, em que estrela te escondes,
Embuçado nos céus…”

Naquela república da serra da Barriga formou-se o primeiro tipo de cultura ampla, no sentido de desenvolver a produção — o que foi mais tarde uma das causas da abolição e é ainda hoje uma necessidade ao nosso progresso. E isto porque foi a primeira tentativa de reação da policultura contra a monocultura açucareira do litoral. A cidade resistindo ao engenho, como escreveu o sr. Gilberto Freyre; e mais do que isso uma nova técnica econômica reagindo contra o mal-estar da época. Na solidariedade dos negros dos Palmares havia muito do espírito do brasileiro, como também lhe pode ser irmanada aquela sociedade cooperativista de Ouro Preto: os negros se quotizando para obter liberdade dos seus irmãos de raça.

Em Palmares lançou-se o primeiro grito de nossa independência. E aquelas cercas que resistiram às tentativas de invasão de Domingos Jorge Velho, traduziam o desejo de liberdade da gente negra. Aquelas palmeiras, balançando aos ventos, simbolizam mais do que uma simples cidade, atalaia dos ideais do povo brasileiro; eram o cantar da maior epopeia da nossa história.

Tudo em Palmares é uma evocação de liberdade: a paisagem, os campos plantados, os mucambos modestos, as danças que se realizavam. Naquele cenário que os vossos olhos comtemplam diariamente, há uma grande página da nossa história; um símbolo de liberdade que não devemos esquecer, porque é motivo de orgulho para todos nós.

Almoço na roça. Litografia a partir de fotografia de Victor Frond

A decadência econômica

A extinção do tráfico trouxe um forte abalo à economia nacional, ainda e muito sustentada pela produção açucareira toda ela entregue ao trabalho escravo. Esse abalo se transformou em decadência da agricultura do açúcar, ao mesmo tempo que tomava incremento no sul, a produção cafeeira. A estrutura econômica modificava-se; mas era sempre o negro que sustentava o trabalho e garantia o êxito da produção. Antonil dissera no século 18º o que se poderia dizer ainda no século seguinte: que os negros eram os pés e as mãos dos senhores.

Não é difícil, portanto, compreender a importância de que se revestia a extinção do tráfico. Importância tanto maior quanto acarretava menor produtividade do trabalho, com o desaparecimento pouco a pouco dos escravos nas lavouras.

Com esse desaparecimento surgiram as dificuldades do trabalho. É nesta mesma época que surgem imponentes e arrogantes os cafezais do sul, pedindo braços. O certo é que a crise da economia açucareira surgiu em consequência da lei de 1850. Esta trouxe dificuldades à economia agrária, dada a impossibilidade de renovar o pessoal das senzalas, distribuindo-o mais eficientemente pelo eito, pela fábrica, pela casa de purgar. Os velhos iam morrendo; os pequenos iam nascendo livres.

Agravava-se ainda mais a saída de escravos para os cafezais paulistas. A expansão econômica do sul, já então chegando ao seu auge, necessita maior número de braços; e estes saem, em grosso volume, do norte, tanto assim que uma estatística alagoana de 1862 informa terem sido exportados 1.598 escravos entre 1853-57. O escravo ia enriquecer os fazendeiros do sul; e os senhores de engenho do norte iam se enchendo mas era de dívidas. Ainda por cima o cholera-morbus de 1855-56 arrasta para o túmulo centenas de negros; ela fez um estrago tremendo entre os escravos. De um total de 18.540 mortos, figuram aí cerca de 5 mil negros. Caracterizando bem os efeitos dessa situação o vice-presidente Roberto Calheiros de Mello, em seu relatório de 1859, escrevia com raro bom senso palavras que eram verdadeira previsão:

“A diminuição progressiva dos braços agrícolas pelo estancamento do tráfico de africanos e pelas epidemias que nos últimos anos têm assolado o Império, suscita no espírito de todos os brasileiros sérias apreensões sobre a sorte futura da nossa lavoura”.

Vê-se assim, bem claro, o que foi a época da decadência econômica. Era que o negro sustentava o Brasil, mantinha a sua economia, produzia a sua riqueza. Tê-los em grande quantidade era sinal de riqueza, notara Saint-Hilaire; e no período da decadência, os velhos senhores, já sem escravos, chamavam aos seus negros por números. Desta maneira quando os credores chegavam com suas contas, os senhores de engenho, arrogantes, gritavam para o feitor: manda 50 para tal serviço, manda 100 para aquele outro. É Gilberto Freyre quem refere.

Por isso mesmo é que conquistada a extinção do tráfico estava aberto o caminho para o trabalho livre. Como causa da abolição, remota, mas de influência bem significativa, não se poderá negar a sua importância, porque decidiu a libertação do trabalho, e com ela, a sorte do negro.

Sob olhar vigilante de um feitor nativo, grupo de escravos é levado para Zanzibar, na costa oriental da África – Revista História Viva – Ano VI – nº 66 pág. 36

A marcha para a abolição

Os caminhos rasgados para a liberdade negra foram cruzadas entre sacrifícios, se bem que possamos nos envaidecer de não ter havido derramamento de sangue. Os africanos conquistaram sua independência com rasgos admiráveis de sofrimento e de bravura. E a evolução, fosse no aspecto da formação social, fosse ainda dentro da estrutura econômica, se fez sentir embora em passos lentos. A Inglaterra, que fora outrora grande traficante de escravos, armou-se um dia, quando deles não mais precisou, em campeã da libertação.

Inicia-se, através da intensa campanha inglesa, a marcha para a extinção do tráfico, precedente à da escravidão. Sob certo ponto de vista, no Brasil, a abolição foi anterior à extinção do tráfico. Assim é que, em 1831, por lei de 7 de novembro, a regência libertou os escravos, que, vindos de fora, entravam no território nacional. E impunha multas aos importadores de negros. Somente em 1850, com a lei 581, de 4 de setembro, é que se pôs termo ao tráfico negreiro, estabelecendo-se medidas para evitá-lo. O que sofreu a agricultura com esse fato todos sabem. A queda do açúcar se fez sentir de modo significativo. O contrabando procurou suprir a falta de negros; e nos meados do século eram apreendidos 508 de 512 negros desembarcados pelos contrabandistas em Sirinhaém e São Matheus.

A lei do ventre livre e depois a dos sexagenários abrem caminho para a abolição completa. E coube ao gabinete João Alfredo, estando na regência do trono a princesa Isabel, apresentar à Câmara o projeto lacônico, porém, importantíssimo, que extinguia a escravidão. Votado por essa casa e pelo Senado, a 13 de maio de 1888 convertia-se em lei, emancipando todos os escravos brasileiros. Se se alegar ter sido tardia a emancipação, deve-se recordar também que foi desta sem luta, nem desgostos, antes irmanados todos os brasileiros no mesmo sentimento de afeto para a gente negra.

Os efeitos do ato não se fizeram tardar. E o mais saliente foi aquele que provocando desgostos na classe agrícola, veio abalar o prestígio da coroa. Um ano depois a consequência mais direta da abolição se fazia sentir: caía o trono que libertara os escravos, instituía-se novo regime político com a República.

O 13 de maio fora o elemento decisivo para a evolução brasileira no sentido republicano. Sem ele a coroa demoraria mais alguns anos; com ele o abalo alcançou as próprias instituições que o haviam gerado. Para compreender-se o choque na agricultura, basta recordar-se que, à época da abolição havia 720.000 escravos avaliados em 500.000 contos. Foi a essa quantia que chegou o prejuízo dos senhores.

Colhedores de café em foto de Marc Ferrez

O muito que devemos ao negro

E assim se fez a abolição. Libertaram-se esses homens que tanto haviam contribuído para a grandeza do Brasil.

O negro ofereceu à formação social do Brasil aquele amolecimento que é tão nosso, na religião, na linguagem, no tipo étnico mesmo. A alegria e a vivacidade do negro, como salientou Gilberto Freyre, vieram quebrar o peso da tristeza do índio e da nostalgia do luso, melhor aclimatando o povo em formação nos trópicos. E com esta alegria e vivacidade foi que o negro penetrou na vida social.

Principalmente através as amas de leite, porque não havia melhor do que negras para amamentar os meninos brancos. Tenho encontrado em anúncios de jornais essa procura da escrava preta para ama de leite; uma preferência que diz bem o valor da negra para amamentar os ioiozinhos. E através também as companheiras da iaiazinha nos brinquedos infantis, ou ainda no catar cafuné na senhora branca, a escrava negra penetrou na casa grande, devassando-lhe os segredos mais íntimos, dormindo na esteira junto à cama das sinhás donas. Sua influência ninguém nega. Seu traço mais vivo está no muito que amoleceu o choque étnico, que sem ele se tornaria ríspido e difícil de adaptar-se junto ao trópico, No tratamento das pessoas, os diminutivos carinhosos, no amansamento da voz dos homens brancos que vinham de Portugal gritando para os trabalhadores, falando alto por cima dos ombros, na tolerância do ioiozinho brincar com os moleques, na bondade mesma de certas senhoras e de senhores.

Mas não será demais dizer que toda essa contribuição não foi avaliada, nem sentida pelos brancos. Os pretos sofriam sempre como escravos. Sofriam como sofreu Cristo. A comparação, tão exata nas suas linhas gerais, é do padre Vieira. Num púlpito de igreja, ouvido pelos nobres do Maranhão, em dia de festas, o S. J. gritou para toda gente ouvir, dirigindo-se aos negros:

“Não há trabalho nem gênero de vida no mundo mais parecido à Cruz e à Paixão de Cristo que o vosso”.

O martírio do escravo está aí numa redução de palavras saídas da boca do maior pregador do seu tempo. Elas nos fazem pensar: foi a voz da Igreja que falou bem alto, com a autoridade maior que se conhece na terra. Com aquele esplendor de voz que foi orgulho de Portugal seiscentista, o padre Vieira pôs a nu os sofrimentos dos negros, as humilhações, os sacrifícios, as vendas em bandas, as mortes em pedaços. Mas os negros souberam suportar isso tudo; a sua resignação como a de Cristo, lhes daria a liberdade.

A mesma bondade e resignação que encontramos nos princípios cristãos, foram as que os negros usaram para conquistar os corações brasileiros, corações a que eles pertenciam muito pelo que lhes deram de seu espírito, de sua alegria, de sua vida. É com esse amor que eles próprios criaram, que os negros estão vivendo até hoje conosco, queridos, sem rivalidades, sem preconceitos, numa mesma união capaz de construir os maiores ideais.

Na vida, disse um filósofo moderno, tudo é fútil, menos o amor. Só o amor é real. Amemos, pois. Amemos sempre e muito essa gente negra que nos trouxe o seu sangue e sua doçura para a formação brasileira. Aqueles homens que construíram a riqueza do Brasil, regando com seu suor a terra, e que ergueram a primeira república em terras da América, numa antecipação de regimen político e econômico; aqueles negros que sofreram humilhações e dores; somente podem ser pagos de tudo quanto nos deram pelo amor que lhe tributamos, e há muitas formas de se manifestar esse amor. Uma delas é a que se realiza esta noite quando recordamos o negro no cinquentenário de sua liberdade, evocando o que essa gente sofreu com resignação e com bondade para nos dar o melhor do seu afeto e tudo do seu amor.

1 Comentário on A abolição, suas causas e suas consequências

  1. Claudio de Mendonça Ribeiro // 22 de novembro de 2022 em 16:40 //

    Caro Ticianelli, boa tarde. Esta foi a maior e a mais perfeita, embora a mais entristecedora, análise geopolítica que já li sobre os afrodescendentes. Nunca havia lido nada igual, muito embora já tivesse consciência do seu sofrimento. Muito grato.

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