Ras Gonguila, o príncipe etíope dos carnavais alagoanos

Rás Gonguila e o Clube Carnavalesco Cavaleiros do Monte comemoram a vitória em um carnaval dos anos 40 ou 50

Rás Gonguila liderou o Cavaleiro do Montes por décadas em Maceió

Benedito dos Santos nasceu em Maceió na Rua do Macena nos primeiros anos do século XX, provavelmente em 1905. Não se tem informações sobre quem foram seus pais e o que fez nos primeiros anos de vida. Sabe-se apenas que era analfabeto.

As notícias mais antigas sobre Gonguila identificam-no como engraxate e carnavalesco fundador do bloco Cavaleiro dos Montes. Alguns jornais grafavam o nome da agremiação como Cavalheiros dos Montes ou Cavaleiros dos Montes.

As primeiras citações nos periódicos são do início dos anos 30, quando foi criada a agremiação carnavalesca que faria história na capital alagoana.

Um dos registros foi encontrado no Diário de Pernambuco de 12 de novembro de 1933, que ao divulgar as atividades para o carnaval do ano seguinte, informou o seguinte: “O Clube Carnavalesco Cavalheiros dos Montes, iniciou ontem na sua sede social em Ponta Grossa, os ensaios de marchas para abrilhantar os festejos de Momo do próximo ano, sob a direção dos populares foliões Batista, José, Lanchas, Gonguila e Benedito”.

Gonguila já existia antes do Ras Gonguila. Esta referência a uma possível origem na nobreza etíope foi aceita pelo engraxate para ser tratado como alguém especial. Há relatos atribuindo ao jornalista Valdemar Cavalcanti a fonte dessa qualificação. O historiador José Maria Tenório Rocha indica que o Ras foi inspirado “pelo título nobiliárquico ou dignitário do Rei da Abissínia, na África, que na época estava em muita evidência; então o folião tomou-o para si, para ser muito reconhecido”.

Essa “titulação nobiliárquica” era fortalecida pelo seu porte físico, um negro alto, forte e altivo.

Em uma das histórias sobre a origem do Ras alagoano consta, sem comprovação alguma, a possível passagem de seus antecedentes, nobres africanos, pela República dos Palmares. Estes antecessores teriam fugido ao ataque dos “paulistas” e assim proporcionaram a sobrevivência da linhagem real que teve continuidade com Gonguila.

Rua do Livramento com o Café Central à direita, onde ficava a cadeira de engraxate de Gonguila

Ganhava a vida como engraxate, com sua cadeira estacionada nas proximidades do Café do Cupertino no Ponto Central de Maceió, confluência da Rua do Livramento com a Rua do Comércio. Seus muitos clientes eram os mesmos frequentadores do Café: políticos, empresários, intelectuais, artistas e, como sempre, alguns desocupados.

Em seu livro Corrupio: memórias, de 1992, Ednor Bittencourt descreve a disputa comercial entre os vários estabelecimentos da capital e ao citar as tabacarias lembrou a do Amorim, que ficava na esquina da Rua do Livramento com a Rua Boa Vista, e a do Zanotti, com seu estabelecimento ao lado do Ponto Central. Este último “usava o carnavalesco Ras Gonguila como imã, com uma cadeira de engraxate em frente à sua porta, ao lado de uma corda pendurada, queimando uma das pontas para acender os cigarros dos fregueses. Era lá que os doutores Albino Magalhães, Severino Albuquerque e Seixas de Barros, o serventuário de justiça Salu Bimba e o vidraceiro Paulo Dias compravam os afamados charutos baianos Suerdieck”.

Foi esse contato diário com parte da elite econômica do estado que estimulou Ras Gonguila a organizar um bloco carnavalesco, apostando que conseguiria contribuições deste segmento para viabilizar sua agremiação. Era uma prática comum na época se valer dos famosos Livros de Ouro como forma de captar recursos para o carnaval.

Assim nasceu o Cavaleiro dos Montes, inspirado nos filmes norte-americanos de faroeste e no Alto do Farol, antigo Jacutinga (que empresta os Montes para a denominação), onde o bloco iniciou seus desfiles durante alguns anos. Sua sede era na Ponta Grossa, uma das moradas de Benedito dos Santos.

Situava-se a cem metros da Praça Moleque Namorador, na Rua São Paulo, n° 202 (atual Rua José Ferreira de Araújo) atrás do prédio onde funciona atualmente a Delegacia do 3º Distrito. Fazia fundos com a Padaria Confiança da família Abrantes. Há informações indicando que a primeira sede teria sido no Farol.

Bloco Cavaleiro dos Montes com Ras Gonguila empunhando o estandarte

Ednor Bittencourt no livro Corrupio, Memórias 2, descreve o Cavaleiros dos Montes como um “bloco da parte alta da cidade, isto é, Farol, e de lá saía, sob o comando de Ras Gonguila, não no estandarte [carregando-o] que ostentava um fidalgo cavaleiro montado num belo ginete e sobre um monte, mas tocando clarim, anunciando a sua passagem”.

A performance carnavalesca do Rás Gonguila à frente do Cavaleiro era tal que, a partir de 1936, quando o Clube Fênix Alagoana inaugurou sua nova sede na Av. da Paz, passou a ser contratado para recepcionar os sócios na entrada dos seus salões.

Utilizava o tradicional clarim e vestia boné e túnica com botões dourados, como faziam alguns porteiros de hotéis, e recebia os “foliões ricamente fantasiados, com muita animação, confete, serpentina e lança-perfume”, como recordou Ednor Bittencourt.

Segundo o professor Bruno César Cavalcanti, antropólogo e pesquisador da Universidade Federal de Alagoas, o sucesso do Cavaleiro dos Montes e de outros blocos populares se deu com a caracterização de alguns bairros da cidade como residenciais, a exemplo da Ponta Grossa, Cambona, Trapiche, Pontal da Barra, Prado, Ponta da Terra e Mutange.

“É também o aparecimento de uma massa urbana expressiva”, nessa época, que delimita o terreno de um carnaval de disputas oficiais “quentes” nas ruas na capital, explica o professor da Ufal. Foi o tempo áureo dos blocos populares.

Ras Gonguila e a a orquestra do Cavaleiro dos Montes nos anos 60

Dois registros revelam que Ras Gonguila não promovia somente festas carnavalescas.

Em 1945, o Jornal de Alagoas de 7 de setembro anunciava que “No Clube Carnavalesco Cavaleiros dos Montes haverá uma festa intima ao som de uma formidável orquestra em comemoração ao 7 de Setembro”.

Eliezer Setton, ao explicar a origem da música Pastoril de Sempre, revela que é uma compilação de jornadas que dedicava, entre outros homenageados, à memória de sua mãe, Terezinha Otílio Setton, que foi mestra do pastoril do Ras Gonguila, no Farol.

A projeção da liderança de Ras Gonguila no carnaval o levou a ser procurado por políticos em busca de apoio eleitoral. Sobre sua relação com candidatos, circularam várias histórias engraçadas, nem sempre comprovadas.

Uma delas narra que, na eleição de 1950, Arnon de Mello era candidato a governador foi levado por seu assessor Theobaldo Barbosa, para conversar com Gonguila e apanhadores de sururu da Lagoa Mundaú.

No Vergel do Lago, entraram em um galpão mal iluminado e Ras Gonguila se dirigiu a eles para apresentá-los ao resto do grupo. Arnon de Mello perguntou no ouvido de Theobaldo o nome do negro alto e forte que caminhava na direção da comitiva.

Gonguila! — disse o assessor no exato momento em que “vivas” eram gritados para Arnon, o que o impediu de entender o nome da principal liderança do bairro.

— Boa noite, ‘seu’ Gorila —, falou o candidato enquanto estendia a mão para o carnavalesco.

— Gorila é a puta que o pariu, Arnon! Meu nome é Gonguila! Rás Gonguila!

Rás Gonguila e o Clube Carnavalesco Cavaleiro dos Montes comemoram a vitória de um desfile nos anos 40 ou 50

A gafe foi tamanha que provocou risadas, desanuviando o clima tenso.

Arnon pediu desculpas, abraçou Gonguila e conversou com ele e com os catadores. Saiu de lá com os votos daquela área e foi eleito governador do Estado.

O clarim de Rás Gonguila deixou de soar para sempre em 1968, quando no dia 21 dezembro um ataque cardíaco fulminante lhe tirou a vida na Rua do Comércio, Centro de Maceió. Foi enterrado no Cemitério de São José, Trapiche da Barra. Tinha 63 anos e deixou cinco filhos.

O bloco, que depois teve início na Rua Formosa e na Rua São Paulo, continuou a existir e manteve o frevo nas ruas da capital por muitos anos, conquistando em sua trajetória 23 títulos máximos.

Quem foi o Ras etíope?

A Etiópia, antiga Abissínia, com a capital em Adis Abeba, chegou ao século XX como o último estado independente da África e dirigido por uma monarquia que se dizia sucessora do Rei Salomão e a da Rainha de Sabá.

O monarca, que foi notícia nos jornais nos primeiros anos da década de 1930 e que influenciou o jornalista Valdemar Cavalcanti a compará-lo ao engraxate e carnavalesco Gonguila, nasceu Tafari Makonnen e em 1911 casou-se com Wayzaro Menen, filha do imperador etíope Menelik II e de Woizero Sehin Mikael

Com esse casamento, tornou-se o príncipe Ras Tafari.

Em 1913, o neto de Menelik II, Lidj Yassou ou Yassou V, passou a ser o imperador. Foi derrubado em seguida pelo conselho dos nobres, vítima de uma campanha da Igreja Ortodoxa Etíope, que o acusou de ter se convertido ao islamismo.

Então assumiu a imperatriz Zewditu (Judith), filha de Menelik II, que faleceu no início de abril de 1930.

A regência da Etiópia era exercida por Ras Tafari desde 1916. Em 1928 foi coroado rei (Negus em amárico).

Ras Tafari, futuro Haile Selassie, em 1924

No ano seguinte, Ras Tafari foi denunciado pelo médico armênio, dr. Alexandre Garabedian, de tê-lo procurado, quando era médico do Hospital Meneli II, em Adis Abeba, para que envenenasse sua sogra, Woizero Sehin Mikael.

O dr. Garabedian recusou, foi preso e depois levado para uma cidade remota, Dire-Daoua, por seis meses, onde contraiu tuberculose. Muito doente, foi levado para Adis Abeba e de lá para a Armênia.

Ras Tafari tinha usurpado o trono de Lidj Yassou, neto de Menelik II e o havia colocado na cadeia, mas temia que Woizero Sihim conspirasse para o regresso de Yassou ao poder.

Utilizando outro médico, o grego Yacocos Zervos, Ras Tafari conseguiu “adoecer” Woizero Sihim, que morreu em abril de 1930. Em novembro, Ras Tafari tornou-se imperador.

Em seguida, mudou o nome para Haile Selassie (O Poder da Divina Trindade em amárico). Era referido por seus súditos como “Sua Majestade Imperial, Imperador Haile Selassie, Eleito de Deus, Rei dos Reis, Senhor dos Senhores, Leão Conquistador da Tribo de Judá”.

Haile Selassie declarado imperador em 1930

Foi notícia em quase todos os jornais do planeta em junho de 1936, quando discursou na Liga das Nações denunciando a invasão da Etiópia pela Itália no ano anterior e a preparação da guerra. A Etiópia tinha sido aceita na Liga das Nações em 1923, quando cumpriu a exigência de abolir a escravatura.

Haile Selassie também influenciou lideranças do movimento negro e recebeu milhares de seguidores, como se fosse um líder religioso ou um messias. Na Jamaica, o movimento “Rastafari” surgiu acreditando que Selassie era um Deus vivo e que conduziria os negros de volta à África.

4 Comments on Ras Gonguila, o príncipe etíope dos carnavais alagoanos

  1. André Soares // 3 de fevereiro de 2020 em 13:20 //

    As vésperas do Carnaval uma matéria como essa é sensacional.
    Parabéns.
    Como sugestão para próximas publicações, fale sobre o Ouricuri e seus personagens.

  2. A história e suas estórias são como encantamentos. Ao passo que mexem com o imaginário ajudam a entender a realidade. Muito bom saber detalhes do nosso passado por meio de personagens como Rás Gonguila. Sempre soube que o jornalismo conta nossa história. Mas, quando ele se dedica a contar a história é ainda melhor. Parabéns e que continue a nos brindar com mergulhos no passado para ver se entendemos quem somos.

  3. Vivemos da nossa história, sem ela nada somos. Esse nordeste é especial nisso. Parabéns.

  4. Edilson Rabelo Caúla // 12 de fevereiro de 2024 em 01:06 //

    Sensacional! Muito lindo o desfile da Beija Flor e emocionante a homenagem a Gonguila príncipe negro da querida Maceió.

2 Trackbacks & Pingbacks

  1. Maceió será tema do samba enredo 2024 da Beija-Flor de Nilópolis – Portal AL
  2. Rás Gonguila, homenageado pela Beija Flor, leva Maceió a Sapucaí - Repórter Nordeste

Deixe um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*