O Natal de Félix Lima Júnior em Bebedouro

Praça Santo Antônio em 1906, no bairro de Bebedouro, Maceió

O texto abaixo, do historiador Félix Lima Júnior, foi retirado do seu livro Festejos Populares em Maceió de Outrora, lançado em 1956 como parte da Coleção Cadernos da AABB, no Rio de Janeiro.

O Natal em Bebedouro

Praça Santo Antônio em 1906, recebendo um festa do Major Bonifácio

Praça Santo Antônio em 1906, recebendo um festa do Major Bonifácio

Nos fins de outubro só se falava, em Maceió, nas festas de Natal em Bebedouro. O que iria apresentar, naquele ano, o Major Bonifácio Magalhães da Silveira? — era o que todos indagavam. Iniciava-se, então, “o avança” nos prédios de aluguel daquele bairro.

As famílias mais ricas e importantes, — “café-society” daquele tempo — escolhiam as casas localizadas na praça de Santo Antônio, em frente à modesta igrejinha. Esses prédios, à margem esquerda da linha de bondes, construídos de taipa e com biqueiras, janelas de guilhotina, eram espaçosos, com grandes salas e quartos, calçadas altas, onde à tarde sentavam-se todos em “preguiçosas” para um dedo de prosa.

Os bondes não faziam “circular” na citada praça, como fizeram algum tempo depois: iam até à margem do riacho Cardoso, junto à ponte ainda existente.

A casa onde morou o comendador Jacinto Nunes Leite ainda está preservada

A casa onde morou o comendador Jacinto José Nunes Leite ainda está preservada

Numa casa da rua Cônego Costa, esquina com a praça de Santo Antônio, residia o patriarca Olímpio Dias Ferreira Éter, com as longas barbas brancas, bem cuidadas, trajando sempre roupa preta.

No outro lado da praça, numa casa de campo, cercada de alpendres e ensombrada pelos cajueiros e mangueiras floridas, morava a família do Comendador Jacinto José Nunes Leite.

Nesse prédio, mais do que centenário, ainda hoje de pé, relativamente bem conservado, residiu com a sua família, em 1833, segundo informa o dr. Olímpio Galvão, no “Memorial alagoano”, Manoel Lôbo de Miranda Henriques — cidadão paraibano que foi presidente da província, no tempo da Regência. Era o pai de Aristides Lôbo, primeiro Ministro do Interior da República.

João Firmino de Assunção, carteiro dos Correios, tipo popular, muito gordo, alegre, amável, querido por todos e cujo estômago parecia não ter fundo, passava vagarosamente distribuindo cartas e jornais. João Tavares da Costa, agente da Nova Companhia Lóide Brasileiro, pai do compositor Heckel Tavares, morava com a família num palacete hoje transformado em casa de saúde [Casa de Saúde Miguel Couto]; era, naquele tempo longínquo, uma espécie de herói de Homero: “rico uma semana e mendigo outra”…

Antes, mesmo, do dia de Natal, como já chegara muita gente estranha, Bonifácio, para animar, arranjava aos domingos, dias santos e feriados, uma folia qualquer: quebra pote, pau de sebo, e, até, em 1918, se não me engano, um “enterrado-vivo“, pobre diabo que permaneceu duas horas sob a terra, em frente à Igreja de Santo Antônio.

Porto de Bebedouro em 1906

Porto de Bebedouro em 1906

Eram festas notáveis, afamadas: no Pará, a do círio de Nossa Senhora de Nazaré; em João Pessoa, a das Neves; no Recife, a do Carmo; na “boa terra”, na velha cidade do Salvador, a do Senhor do Bomfim; em Maceió, a do Natal em Bebedouro, visto ter perdido o brilho a de Bom Jesus dos Martírios.

Modificava-se, de repente, com a aproximação do Natal, a fisionomia do velho bairro, que passava a ser dos mais movimentados pontos da capital. Candidatando-se às muitas moças casadoras das famílias que veraneavam, rapazes do comércio, estudantes e filhos de famílias ricas e remediadas, enchiam, à noite, os bondes da Catu, guiados pelo Catuaba e pelo Bernardino, iam para Bebedouro e uma vez por outra arranjavam uma dança ou uma festinha íntima. Não se inventara ainda o bingo dançante, nem o pif-paf…

Na sala de visitas, bem iluminada por um candieiro belga, preso ao forro, dançava-se, com música de harmônica, até às 10 da noite, ou declamava-se, ao som da Dalila, no piano da casa, “Relíquia“, de Júlio Auto Cruz Oliveira:

As cartas? Olha, ouve-me bem: rompia-as
e queimei-as depois. Se um dia fores
de novo ao nosso ninho, as cinzas frias
das tuas cartas nem verás, Dolores.

O lírio“, de Sabino Romariz:

O lírio era uma flor imaculada,
Casta como um sorriso de Maria:
Flor de uma alvura tal que parecia
Ter sido feita de hóstia consagrada.

Colégio bom Conselho 1905

Colégio Bom Conselho em 1905

Noivado“, de Aristeu Andrade, antigo promotor público da capital:

O meu espelho, esse sincero amigo,
Que tão fiel minhas feições retrata,
no meu cabelo cor de bronze antigo,
fez-me entrever um fio cor de prata.

terminando com “O teu lenço“, de Guimarães Passos:

Esse teu lenço que eu possuo e aperto
De encontro ao peito quando durmo, creio,
Que hei de um dia mandar-te, pois roubei-o,
E foi meu crime, em breve, descoberto.

Algumas “sinhazinhas“, românticas ou desiludidas, suspiravam ou escondiam “una furtiva lacrima“, como se vissem, realmente,

Em cada ponta um beija flor pegando
Ir o teu lenço pelo espaço voando,
Pondo, enfunado, côncavo de beijos.

Moças e rapazes eram bairristas: só declamavam versos de poetas conterrâneos

Palacete de Francisco Leão na década de 1920

Palacete de Francisco Leão na década de 1920

Nos domingos e feriados, as casas de famílias se enchiam de parentes e amigos que iam “passar o dia“.

Logo depois da missa encontravam-se grupos de rapazes pelas ruas — gente de tamancos e de chinelas, alguns de pés descalços, paletó de pijama, uma enfieira de cajus na ponta dos dedos, uma cestinha de mangabas maduras, garrafas de “caximbo” ou de aguardente debaixo do braço, ou um litro de vinho de jenipapo, verdadeira ambrosia, fabricado no sítio das Mangabeiras pelo velho Cândido Romão Alves Nilo, porteiro e arquivista da Intendência Municipal. Esses grupos rumavam ao Cardoso.

Alguns ficavam no sítio Petrópolis, da família Leão, onde se metiam numa piscina com porta d’água, debaixo de um telheiro, banho especial do qual ninguém queria sair. Nas proximidades da Granja Conceição muitas casas tinham banheiros, cobertos de palhas, franqueados aos amigos. Bonifácio possuía um, bem cuidado, que se enchia logo cedo e que só se desocupava quando o estômago dava hora de almoço.

Quem tinha pernas boas, fortes, e gostava de caminhar, ia tomar banho de água fria, límpida, cristalina, nas bicas das Goiabeiras ou de Fernão Velho, na encosta do morro, então coberto de grossa capoeira, verdadeira mata. Bicas que rivalizavam com a das Marrecas, no Pilar.

Almoçava-se e jantava-se mandim, sururu, ostras, maçunim e carapebas pescadas ali mesmo, na lagoa do Norte. As canoas atracavam em frente à Estação da Great Western, onde o dr. Orlando Araújo, quando prefeito, mandou construir um cais.

No domingo matava-se um peru, um capão gordo ou um carneiro, comprado na Satuba, em Apolônia, e para a buchada, “puxada” a vinho tinto, português, adquirido a 2$000 a garrafa na Dispensa Familiar ou na Mercearia Boa Vista, do Serafim Costa, chegavam os amigos, os compadres e os conhecidos dos amigos, pois “onde come um comem cem”…

Coco de Roda

Coco de Roda

Dançava-se o coco, o tradicional coco alagoano, do qual hoje pouca gente se recorda. Os rapazes, na maioria empregados no comércio, alunos, em férias, dos cursos mantidos pela Sociedade Perseverança e Auxilio, chegavam cedo, viajando nos bondes superlotados da Catu, fazendo algazarra, batendo no soalho dos carros com as pontas das bengalas, então muito em moda, e cantando:

O pau rolou,
caiu!
Lá na mata
Ninguém viu!

Mulher não vá,
Mulher não vá,
Mulher você não vá lá!
Marido eu vou,
Marido eu vou,
Que papai mandou chamá!

Mata esta barata,
Machuca as baratinhas,
Que eu tenho o meu dinheiro
Pra gastar com as moreninhas!

Estrugia o ganzá e quando terminava a folia regressavam eles nos últimos bondes, com o mesmo alvoroço, comendo amendoim, tapioca, cocada, peixe frito, comprados a uma preta velha na esquina da rua Passos de Miranda, em frente ao Asilo das Órfãs.

Os caixeiros (naquele tempo não se falava em comerciários…) voltavam antes, pois era preciso dormir e acordar cedo, no outro dia, para “pegar no pesado”… Não havia sindicato, nem leis trabalhistas. Quem chegava atrasado um dia levava um “sermão“: na outra vez era sumariamente posto no olho da rua e, como o comércio era pequeno e todos os patrões se conheciam, não se arranjava outra colocação facilmente.

Qual o negociante que queria empregado chegando tarde? Nos sábados, porém, eles se vingavam: dançavam a noite toda e no domingo, pela manhã, ainda se ouvia o barulho do ganzá, “pra pega o só c’a mão“…

Quilombo de São José exibindo a antiga dança do quilombo

Quilombo de São José exibindo a antiga dança do quilombo

E os folguedos tradicionais, alguns dos quais desapareceram, inclusive o Quilombo? Aliás foi em Bebedouro, em 1910, mais ou menos, que eu, ainda menino, assisti um, pela primeira e última vez.

No oitão da casa do velho Olímpio Eter, apoiados na calçada alta, ergueram os mocambos dos pretos, com caibros usados e galhos de árvores, cobertos com palmas de coqueiros e ouricuri, cercados com uma paliçada relembrando a serra da Barriga com o Zumbi Sueca e seus sequazes. A negrada, semi-nua, dançava e cantava alegremente, livre do senhor do engenho e do feitor com o seu relho:

Folga negro,
Branco não vem cá.
Se vié,
Pau há-de levá!

Uma menina alva, cabelos louros, escolhida a capricho, era a Rainha dos quilombolas, com vestido, sapatos e meias brancas, uma corôa de papelão doirado ou de folhas de flandres.

Depois surgiam, desconfiados, em pequenos grupos, os soldados paulistas do Terço de Domingos Jorge Velho e os de Sebastião Dias Maneli, alem de índios untados de ocre, com tangas e cocares de penas, arcos e flechas em punho, cercando o quilombo. Combatia-se valentemente e terminava a brincadeira com a rendição dos pretos, que eram aprisionados.

Os vencedores saiam a “vender” os cativos às pessoas das mais destacadas que assistiam o folguedo, isso por uma nota de 1$000 ou uma pratinha de $500. Os negros, agradecidos, beijavam os pés do “Sinhô”, da “Sinhá” ou da “Sinhazinha”, e fugiam imediatamente, para serem presos e vendidos novamente, mais adiante. O dinheiro apurado repartia-se, depois, irmamente, entre vendedores e “vendidos”…

Cavalhada em Bebedouro, acervo do Museu Theo Brandão

Cavalhada em Bebedouro, acervo do Museu Theo Brandão

Muitas famílias de destaque — Cel. Antônio Souza Almeida, Valeriano Gomes, Agrimensor Luiz Pôrto, João Dias Souto, José Abreu — tinham deixado suas confortáveis residências no centro da cidade, em Jaraguá, no Farol, em Pajuçara e, no primeiro domingo depois do dia de ano assistiam a Cavalhada, na qual apareciam, montando animais de alto preço e bem tratados, o Major Bonifácio Silveira, Américo Maia, João Inglês, Major José Pereira Acioli, sub-comandante da Policia, João Camelo e outros.

No Pastoril, ensaiado pelo Etelvino Lima, um dos mais eficientes “Secretários” do Major Bonifácio, núcleo do qual sairia, no carnaval, o bloco “Ciganinhas do Major“, cantava-se, com entusiasmo:

Boa noite, meus senhores todos,
Boa noite, senhoras também!
Somos nós, as pastorinhas belas,
Que aqui estamos, vindas de Belém!

Só pedimos a vós, nossos partidários,
Que sustentem os nossos cordões.
Com muito gosto cantaremos loas
Que satisfaçam os vossos corações!

Pastoril em Maceió nos anos de 1960

Pastoril em Maceió nos anos de 1960

Os torcedores dos cordões azul e encarnado, cada qual mais entusiasmado, brigavam, no leilão, disputando o cravo ou a rosa, oferecendo presentes, alguns bem caros — vidros de Houbigant, vestidos de seda, joias, caixas de passas, dúzias de lenços — à Mestra, à Diana, à Contra-mestra, à Libertina, e a outras mocinhas dos cordões, das mais bonitas e mais desembaraçadas, chamando-as em cena e pregando em seus vestidos notas, às vezes, de 50 e 100$000!

As meninas, bem vestidas, de branco, com sapatos da mesma cor, chapéus de palha da Itália com uma fita larga, atravessada, enfeitadas com flores artificiais, agitando os pandeiros, apareciam debaixo de palmas entusiásticas, cantando alegremente:

Vamos pastorinhas,
Vamos a Belém,
Ver Jesus nascido
Para o nosso bem!

Vamos ver Jesus nascido
Na lapinha de Belém,
Vamos ver o Prometido
Que é todo o nosso bem!

O cordão encarnado, do lado direito, era encabeçado pela Mestra, que cantava:

Estrela do Norte,
Cruzeiro sagrado.
Vamos dar um bravo
Ao cordão encarnado!

Eu sou a mestra do cordão encarnado
O meu partido não posso negar.
As minhas danças, as minhas cantorias.
Senhores todos queiram desculpar!

A Contra-mestra, dirigindo o cordão azul, cantava:

Estrela do Norte,
Cruzeiro do Sul.
Vamos dar um viva,
Ao cordão azul!

Eu sou a Mestra do cordão azul,
O meu partido não posso negar.
As minhas danças, as minhas cantorias,
Senhores todos queiram desculpar!

A Diana, com fitas azul e encarnada, colocada entre os dois cordões, gozava de uma neutralidade cômoda… Entre les deux, pensava ela, enquanto cantava:

Sou a Diana, não tenho partido,
O meu partido são os dois cordões!
Peço palmas, peço fitas e flores,
Peço louvores a estes dois cordões!

Missa campal na Praça Antônio Brandão em1939

Missa campal na Praça Antônio Brandão em1939

Quem fazia o papel de Fúria era o Calazans, moreno meio corpo, estatura regular, irmão do conhecido humorista Jararaca, que todos ouvem diariamente nos rádios do Rio de Janeiro. Ambos eram então, na capital alagoana, oficiais de alfaiate.

O Fúria surgia vestido numa roupa de flanela vermelha, colada ao corpo, tentando inutilmente conquistar com as suas promessas e artimanhas, as ingênuas pastorinhas.

Num tablado em frente ao Teatro Santo Antônio dançava o Reisado, composto de figuras pitorescas, cobertas de fitas e de espelhos, com suas marchas e contra-marchas:

Oh meu secretário de sala!
Traga a cadeira para o Rei se sentar!

Além do Rei, muito cioso de suas “altas” funções, conduzindo uma espada desembainhada, arma velha que lhe fora emprestada, de certo, por algum capitão da extinta Guarda Nacional, exibiam-se o Mestre, o Embaixador, o Bandeirinha, alem de outras figuras e de dois Mateus, com chapéus afunilados, pés descalços, cara pintada a carvão, uma trança de palha de cebola presa ao punho direito, dando pancadas nos moleques e soltando suas piadas sem graça, algumas delas bem apimentadas, fazendo rir a maioria dos espectadores.

Nos intervalos, os que assistiam a função recebiam de suas figuras um lenço branco, bem engomado, que era procurado depois e devolvido com uma nota de 2$000 ou uma moeda de prata de dez tostões.

Guerreiro em Maceió em 1943

Guerreiro em Maceió em 1943

Numa das últimas festas de Bebedouro, já na terceira década deste século, é que apareceram, noutro tablado, em frente à casa do Alfredo Abreu, na rua Passos de Miranda, os Guerreiros — com a Rainha, o Rei, o Embaixador, o índio Pery e outras figuras originais com mantos de ganga vermelha, corôas de papel ordinário, fitas de várias cores e tanto espelho que dava agonia

A Nau Catarineta, bem arranjada, com seus altos mastros, suas escadas de corda, convés de tábuas mal aplainadas, estava cercada de gente a rir das graças insulsas do Manoel Bolachinha, padre capelão, — vestido de batina, com chapéu eclesiástico, lenço vermelho, de rapé, um livro de orações e óculos escuros.

Os marinheiros, bem trajados, com roupas e sapatos brancos, obedeciam às vozes de comando dos oficiais, de espada e dragonas, perfilados, no tombadilho, ao redor do Almirante e do Capitão de Mar e Guerra, ambos com chapéus de dois bicos, enfeitados de arminhos. Todos os figurantes da barca — Capitão-patrão, piloto, guarda-marinha, gajeiro, ração, mestre e marujos — cantavam, com convicção:

Que sinal é aquele,
Que daqui se vê?
— É a nau almirante
Que vem combater!

Que nau é aquela.
Que vem acolá?
— É o Minas-Gerais
Que vem guerrear.

Lá na linha avistam vela!
Lá na linha avistam vela!
— Avistei, meu Comandante,
Uma fragata de vela!

Que navio é aquele,
Que daqui se vê?
— É a nau almirante
Que quer combater!

Para enfrentar a marujada cristã do Rei de Portugal tinham erguido em frente à barca um fortim turco, com ameias, torres, canhões, comandado pelo Chico Barbeiro (Francisco da Cunha Lima), que já vendera todas as emboladas que mandara imprimir com grande sucesso, tanto que ainda são lembradas apesar de decorridos muitos anos.

Chico Barbeiro aparecia vestido de mouro, com uma blusa vermelha, calças brancas, gorro azul com a lua crescente, botas pretas, altas, de cavalaria, e trazia à cintura um espadagão.

Esses folguedos atraiam gente de todos os lados de Maceió e deixavam às moscas o Pastoril de Dão, na rua do Cravo, o do Severiano Cândido, no Aterro do Cemitério, a Marujada Jacutinguense, na Ladeira do Brito, a Chegança de Zé Pedro, no Beco dos Cachorros, as bem organizadas festas da Estrada Nova.

Praça da Matriz em 1906

Praça da Matriz em 1906

Trens, automóveis e bondes trafegavam superlotados, com pingentes arriscando a vida. Policiando a festa via-se o coronel Levino Costa, da Guarda Nacional, escrivão do Juri e sub-comissário nas horas vagas, residente no bairro, onde faleceu.

Para apoiá-lo, em caso de necessidade, circulava uma patrulha de dez soldados de Policia, comandada pelo Cabo Carnaúba — alto, magro, desempenado, com calça branca e blusa azul, o quépi, de banda, no alto da cabeça, enorme apito preso à túnica e um sabre comprido, tipo rabo-de-galo, digno de figurar no Instituto Histórico.

No Teatro Santo Antônio, de quando em quando encenavam um dramalhão mais velho do que a Sé de Braga, ensaiado pelo Etelvino Lima, e no qual tomava parte o Filemon Azevedo, funcionário municipal, recebendo delirantes aplausos.

Quando se dançava coco na casa do Olímpio Eter, como no ano de 1917, coco tremendo que durou a noite inteira, relembrado, há pouco, pelo brilhante cronista J. Silveira, valsava-se na residência do Coronel Antônio Souza Almeida ou na do Bonifácio, toda iluminada a giorno na frontaria e nos oitões, como registrou o sábio dr. Porto Carreiro, então simples estudante, assistindo os festejos natalinos de 1902.

Pela ladeira do Calmon, de onde se avistava a lâmina de prata da lagoa Mundaú ou do Norte, em cujas águas refletia-se a lua cheia, descia um grupo boêmio, de rapazes modestos, filhos de famílias humildes — tipógrafos, vendedores ambulantes, estivadores, angariadores de bicho, cigarreiros — tocando flauta, bandolim, violão, reco-reco, saxofone, e cantando com alma:

Na casa branca da serra,
Que eu fitava horas inteiras,
Entre as esbeltas palmeiras,
Ficaste calma e feliz.
Aí teu peito me deste,
Quando pisei tua terra,
Aí de mim te esqueceste,
Quando deixei teu país!

Da praça dos Martírios até à de Santo Antônio íamos encontrando as chácaras bem cuidadas do Luiz Lessa, funcionário das Capatazias da Alfândega de Jaraguá, com um prédio ainda hoje existente, conhecido como “a casa da Baronesa“; a do dr. Luiz Eugenio da Silveira Leite, com uma das mais belas lapinhas de Maceió; a do Luiz de Carvalho, em frente à casinhola do vigia da The Great Westem of Brasil Railway Co; a do Afonso Zanoti; a do Manoel Mendes, capitalista, proprietário da maior casa de ferragens da capital alagoana; a do Carneiro Tiririca; a da família Wucherer, onde tem sede e campo de esportes, presentemente, o Centro Sportivo Alagoano; a do velho Nobre — João Gualberto Ferreira Nobre — probo funcionário da Fazenda Estadual; a da família José Cândido Calheiros de Melo, na qual se via, ao lado, um tanque de cimento rodeado por estatuetas; a do dr. Manoel Pontes de Miranda; a do sr. João Tavares da Costa, agente da Companhia Novo Lóide Brasileiro, pai do Heckel Tavares, chácara hoje transformada numa casa de saúde.

Nessas chácaras, nesses “sítios“, como eram e são conhecidos, pitorescos e alegres, os donos da casa, seus parentes e amigos descansavam, à tardinha, em alvas redes armadas debaixo das mangueiras seculares, dos cajueiros floridos, dos jambeiros cobertos de flores amareladas, que exalavam um suave perfume.

Praça Santo Antonio na década de 1920

Praça Santo Antonio na década de 1920

Quem passava, de bonde, na Cambona, no Bom Parto, no Mutange, na Baixinha, encontrava casas iluminadas, com janelas abertas, cheias de pessoas apreciando as lapinhas cobertas de palha de ouricuri.

Via-se a manjedoura com o Menino Jesus, tendo ao lado São José e a Virgem Maria; uma enorme estrela indicava o caminho aos Três Reis Magos — Gaspar, Baltazar e Belchior com as suas oferendas de ouro, mirra e incenso; num lago, arranjado com uma lata vazia, de goiabada, flutuavam patos, gansos, cisnes, marrecos; ao lado bonita plantação de arroz bem verde, parecendo um tapete; junto à manjedoura o boi, o burro, o galo, o cavalo, o carneiro, alem de outros animais, de celuloide, “made in Germany“; pastores, de joelhos, adoravam o Deus recém-nascido, enquanto seus rebanhos permaneciam afastados da estribaria; céu de papel ou de pano azul, com estrelas em profusão e a lua cheia. Ninguém conhecia, não se usava árvore de Natal. Isso era bom lá para a Suécia, Noruega, a Finlândia, a Alemanha, a Dinamarca, para os arianos…

Numa dessas chácaras residia José Vicente Tatá, habilíssimo artista, mestre de funilaria da Escola de Aprendizes Artífices, e era ele, soltando uma dúzia de foguetes, quem avisava, todos os anos, aos “irmãos da opa“, que o primeiro caju amadurecera… E o acontecimento era festejado com copinhos da “branca“, da “douradinha“, e com camarões torrados para “tira-gosto“.

Rua Benedito Silva e a igrejinha do Flechal de Cima em 1930

Rua Benedito Silva e a igrejinha do Flechal de Cima em 1930

No Frechal de Cima, numa casa modesta, coberta de palha, com piso de tijolo, iluminada com “mexeriqueiros” de querosene, sambava numa animação louca gente modesta: domésticas, diaristas, pedreiros, soldados do Exército, condutores de bondes, maquinistas da Great Western, tecedeiras da fábrica de Fernão Velho. Divertiam-se tanto quanto os ricos, pois todos eram filhos de Deus…

Na praça de Santo Antonio, bem iluminada, dezenas de vendedores ambulantes ofereciam roletes, cocada, bolos, sorvete, amendoim torrado, pipoca, farinha de milho, broas, alfinim e manuês.

Em dois botequins o França Morel e o preto Sabino vendiam caldo de cana, gengibirra, a conhecida “cerveja de cordão“, que estourava como champanhe, ao ser aberta.

Noutros botequins e em barracas cobertas de palhas, com paredes de esteiras de periperi adquiria-se cerveja gelada, guaraná Ceci — refrigerante fabricado pelo sr. Manoel de Araújo Pinheiro — refresco de maracujá, de caju, de mangaba, de abacaxi, empadas.

Famílias modestas enfeitavam a sala de visitas de suas residências com cordões de bandeirinhas de papel de seda, palmeiras e crótons em latas de querosene pintadas, cobriam o piso com areia da praia, aumentavam a iluminação, colocavam várias mesinhas cobertas com alvas toalhas bem bordadas, surgindo assim bares onde se podia cear boas fritadas de sururu, camarão ensopado, casquinhos de siri, vatapá, galinha ao molho pardo, curimã frita, mungunzá, tapiocas e grude de goma.

Barracas e mais barracas, exclusivamente para jogos, formavam uma longa rua que terminava nos trilhos da estrada de ferro. Bozó, jaburu, caipira, jogava-se tudo! Um camelô, gritando com toda a força dos pulmões, atraia muita gente que gostava de arriscar seus cobres: — “É o popular, o conhecido jogo do caipira! Quem mais bota. mais tira!”

Nessas barracas não bancavam o sete e meio, 31, não se explorava o pocker, o “chemin de fer“, que constituíam privilégio de gente grã-fina, fidalga, reunida em certas salas de jantar de casas ricas. E as paradas eram bem altas…

Ladeira da Chão início do século XX

Ladeira da Chão início do século XX

Um pastoril bem organizado, composto exclusivamente de meninas graciosas, filhas de família, exibia-se, na rua Passos de Miranda, somente para selecionadas pessoas, em sala fechada, evitando os inconvenientes do “sereno“.

Na calçada da igreja de Santo Antônio alguns populares, fazendo pouco das ordens da Policia, jogavam bozó. O barulho dos dados rolando no cimento atraia outros viciados…

No dia 24, à meia noite, celebrava-se a missa campal, num altar armado à porta do templo. Alguns minutos antes paravam as rodas de jogos, detinham-se os trivolis e carroceis, ficavam desertas as barracas, todos iam assistir a santa cerimonia, ajoelhando-se no chão sujo quando o sacerdote, ao som dos tímpanos, erguia a hóstia consagrada e o cálice com o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Ao iniciar-se o ano novo dava-se a benção do S. S. Sacramento, no mesmo local.

Em 6 de janeiro, dia de Reis, terminavam as festividades. Desarmava-se a lapinha às 9 da noite, tirava-se a coberta de palha para ser queimada, numa fogueira, nos fundos da casa ou então no meio da rua. Moças e rapazes dançavam ao redor e cantavam, entristecidos:

Adeus, meus senhores,
Adeus, que eu me vou.
Até para o ano
Se nós vivo for!

Fora enterrada “a cabeça do boi“. Muita animação, muita gente satisfeita e feliz. Todos eram honestos cidadãos da República da Alegria, presidida pelo Bonifácio, de saudosíssima memória.

Bondes na Praça dos Martírios em direção a Bebedouro

Bondes na Praça dos Martírios em direção a Bebedouro

Meia noite. Da rua do Banheiro ou da margem da lagoa, em frente à estação dos antigos bondes da Catu, ouvia-se música, música animada de um “esquenta-mulher“. Que era, que não era? Todos se dirigiam, apressados, para a rua Cônego Costa e encontravam deus Momo, representado pelo Aristofanes Cabral Costa, sub-oficial do Exército, com uma coroa de papelão dourado, cabeleira postiça, meia máscara de cetim preto, calções de veludo vermelho, sapatos rasos, de verniz, camisa de seda branca, manto azul cheio de bordados, um tricórnio coberto de lantejoulas.

Chegara numa canoa ou num carro enfeitado, cercado de numerosos “súditos” conduzindo fogos de bengala, de varias cores, acesos, para anunciar ao povo maceioense o início de seu feliz reinado — outra “presepada” do velho Bonifácio, que marchava à frente do cortejo, alegre, com seu chapéu de palhinha, balançando na ponta da bengala…

Estavam terminados os festejos natalinos. Voltava-se a cuidar do carnaval. Quinze dias depois, na rua do Comércio, José Cardoso, Alfredo Fiock Pinto e Domingos Simões expunham as primeiras máscaras, abriam sacos de confete, vendiam bisnagas, línguas de sogra, apitos, o diabo!

E tudo começava novamente.

Carnaval, São João, a festa dos Martírios… O povo de Maceió sabia divertir-se antigamente, com ordem, animação e espírito. Hoje é tudo tão diferente!… Como parecem longe aqueles tempos, que nunca mais hão de voltar!!!

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