Contrabando de escravos em Alagoas

Almoço na roça. Litografia a partir de fotografia de Victor Frond

Sob olhar vigilante de um feitor nativo, grupo de escravos é levado para Zanzibar, na costa oriental da África – Revista História Viva – Ano VI – nº 66, pág. 36

A Imprensa, “jornal político e social” de Pernambuco, republicou em sua edição de 26 de outubro de 1850 um “Comunicado” que já havia sido divulgado no jornal Conciliador, “e como ela [ele] é de interesse, e convém que se conheçam os contrabandistas, o mesmo redator nos confiou dito comunicado para publicá-lo em nosso jornal”.

Alagoas

Maceió, 27 de julho de 1850.

Um fato ocupa hoje a atenção do brasileiro; em todos os círculos e em todas as conversações se trata do Cruzeiro inglês nas costas do Brasil, e hostilidades dentro dos seus portos, a fim de perseguir o tráfico de africanos livres.

No parlamento brasileiro é a questão do dia; as sessões secretas já na Câmara dos Deputados, e já no Conselho de Estado, e mesmo a natureza e importância da questão trazem os ânimos preocupados.

É de fato nenhuma mais que esta, entre as questões importantes, deve ocupar a atenção do brasileiro, tanto pela natureza dela, quanto por achar-se empenhada a honra, a dignidade e a palavra da nação brasileira para com os ingleses, na supressão e repressão do tráfico de africanos livres.

Os fatos altamente clamam e bem alto pedem, que os brasileiros se interessem por semelhante questão, que emitam seu parecer, não só para orientar o governo do Brasil, como também para salvar o sentimento nacional perante a nação ofendida pela quebra, ou nenhuma observância dos contratos ou sua fé.

Portanto prescindindo de uma oposição ao governo, e tratando a questão pelo lado do justo, e somente fazendo a censura de justiça, e muito para expressar um sentimento que me parece geral nesta província, vou aventurar algumas ideias, apresentar fatos que aqui se dão, a fim de que se conheça o sentimento dos bons alagoanos, que não dão guarida aos traficantes, e o governo dê fim ao indiferentismo em que se tem votado para uma questão melindrosa — qual a da supressão e repressão do tráfico de africanos livres; sinto que os excessos votem o governo a um desrespeito, todavia não posso deixar de expressar-me em favor da causa, que empenhou a palavra da nação brasileira — o seu voto.

Sabem todos, que entre o Brasil e a Inglaterra existem tratados firmados pelas duas potências, e em diversas épocas, com o fim de empenhar todos os esforços para acabarem o tráfico de africanos livres, e que por isso deveres recíprocos se impuseram às duas nações: reclamação têm havido de ambas as partes, e não é preciso estar a par das nossas questões políticas para saber-se, que esta é uma das que muito tem ocupado as atenções da pasta estrangeira — tal a sua gravidade; e o poder legislativo tem procurado remover certas dificuldades, não só com leis fortes e apropriadas as circunstâncias, como também em discussões, que bem exprimam o sentimento dos brasileiros, para assim salvar a honra e a palavra imposta pelo voto da nação.

Mas há também um fato, que, em certas e diversas épocas, em tempo de tais e tais personagens, enfim com a parcialidade do poder, as reclamações são quotidianas, a quebra da palavra torna-se proverbial e a introdução de africanos tão escandalosa, que todos os bons brasileiros temem e com razão uma crise, — e daí a guerra entre as duas nações, e conseguinte forçados pela necessidade da conservação nacional a tomar parte em uma guerra injusta, e muito pouco airosa e digna à bandeira brasileira.

Não tem sido só uma vez, que temos deplorado a quebra do poder do nosso governo, e bem assim hostilidades; porém também não tem sido só uma vez, que a Inglaterra tem pedido o cumprimento dos tratados, e colocado na alternativa, isto é, de um lado o dever e de outro o desprezo para o que a nação brasileira se comprometeu, veja-se forçadas a esses excessos que deploramos.

Escravos no Brasil

É pois, justo que a Inglaterra saiba, que nesse conflito só está empenhado o governo do Brasil, tanto porque é ele quem representa no direito externo e como porque é dele que devem partir todas as medidas e providências tendentes a observância dos tratados; bem longe está do sentimento dos bons brasileiros concorrerem para a quebra da palavra de suas nações; — se são forçados a presenciar o mais completo desprezo ao deveres, que a nação se impôs em uma questão justa, e de utilidade própria — qual a da supressão e repressão do tráfico de africanos livres, é devido a intervenção de gente estranha.

Sim de gente estranha, porque são dos portugueses, que partem as sociedades comerciais, que têm por fim a introdução de africanos livres, no Brasil; são dos portugueses — dessa gente, que nós brasileiros damos hospitalidades, que entregamos o nosso comércio, o nosso solo para eles usufruírem, que partem essas associações comerciais de introdução de africanos livres espalhados a longos anos por todo o Brasil, e agora com mais fervor e eficácia.

Aí só temos a deplorar a indolência do nosso governo, que reconhecendo como deve de reconhecer a causa principal da falta da observância da palavra da nação brasileira para com a Inglaterra, se veja sempre, e agora mais do que nunca tolhido e falto de ação; e bem assim a vergonha de vermos fazendo causa comum com esses traficantes portugueses, alguns brasileiros, que venderam suas honras e dignidades a troco da carne humana, ou de alguns dinheiros, que curam uma causa justa e humana no interesse pecuniário, que antepõem aos interesses sociais, os interesses particulares; porém os bons brasileiros não tomam a cargo semelhantes desumanos, a maioria e maioria absoluta dos brasileiros odeiam a esses míseros filhos do crime, e tem em muita conta o empenho da palavra da nação brasileira; já mais deixarão de tomar a causa do justo, e com quanto sintam os efeitos deste ou daquele excesso e desrespeito, curvam-se a voz da justiça.

A supressão e repressão do tráfico em geral não tem sido tanto quanto se deve, mas ao menos em certas épocas ela tem sido tanto quanto se pode; verdade é que em determinadas épocas parece até que o governo a protege: hoje, por exemplo, — quero dizer — desde que subiram ao poder os homens de 29 de setembro de 48 [Gabinete do Império], denominado os regressistas, corcundas ou constitucionais, a introdução de africanos no Brasil tem sido feita em grande escala; não quero com isto afirmar já que o governo a proteja, — que seja um ato dele governo, porém o certo é que a introdução tem aparecido como nunca, a ponto dos ingleses dentro dos nossos portos e até nos próprios vapores da carreira procurarem africanos, e vendo o indiferentismo do governo em desafogo de tanto menosprezo em que se tem os tratados, cometem hostilidades.

Talvez o governo do Brasil ignore a proteção que as autoridades subalternas prestam aos desembarques, — quero mesmo supô-lo isento de toda culpabilidade, — quero até supor que os homens do poder só tendo diante de si os efeitos da rebelião de Pernambuco, e a parte que nela teve o partido liberal do Brasil, e cercados por assim dizer, dessas impressões, não veja para punir senão o crime de rebelião: vá enfim assim já que o rebelde tanto atormenta o domínio dos regressistas; porém não posso deixar de censurar a maneira por que, nos vexames em que se tem visto o governo e os seus, querem fazer valer os brios — a nacionalidade brasileira: pelo modo de discutir da Câmara dos Deputados tendo à frente o ministério —, se vê claramente que o governo procura empenhar os ânimos, alvoroçar a nacionalidade brasileira e predispô-la; e quem sabe para o que? Será para uma guerra contra a Inglaterra? Será este um dos pontos secretos do gabinete? — Altos são os desígnios dos poderosos…

Na Câmara dos Deputados o governo com um certo ardil procura lançar o odioso sobre a pequena oposição liberal que ali há, — tem procurado tirar a esta até o direito de censura que lhe assiste; alteando os brios nacionais como que estimula a nobre oposição para acompanhá-lo em suas represálias contra os ingleses; as folhas ministeriais convidam os brasileiros para uma resistência, e já na corte houveram exemplos de ofensas; enfim tudo do governo parece dispor os ânimos para a guerra.

É certamente bem sagaz este procedimento, mas quem não vê que o governo exprobra o empenho da nobre oposição para lançar sobre ela a causal dos seus apertos e embaraços? — A cruel situação em que se acha? Pode ser que não; porém o que quer dizer — o governo alvoroçar a nacionalidade em uma questão, que só há o não comprometimento dos seus deveres? O que quer dizer o governo com a exprobração que faz a nobre oposição de falta de brios nacionais e amiga dos ingleses? Que pretensões tem a Inglaterra no Brasil? — Será crível que a Inglaterra queira mais do que a observância e execução da palavra da nação brasileira em uma questão útil para o Brasil do seu maior interesse e de maior justiça e humanidade? — Isto não inculcam o governo e os seus. A esta farsa ministerial lembra-me outra que me parece ter aplicação.

Colhedores de café em foto de Marc Ferrez

Quando na Europa as nações coligadas sob a influência de Pitt [William Pitt, 1.º Conde de Chatham (15/11/1708 – 11/05/1788) foi um estadista britânico, ministro da Guerra durante a guerra dos Sete Anos, quando conduziu seu país à vitória sobre a França, e primeiro-ministro (1766-1768)], procuraram subjugar e vencer a bandeira da república francesa, já com uma guerra externa, e já alteando a guerra civil na Vendeia, Bretanha etc., etc., favorecendo ao partido realista; a França entregou a si só, e sob o grão poder da convenção, repelia a conjuração dos reis armados; — os franceses conquistaram a Flandres, a Holanda e toda margem esquerda do Reno, exceto Mogúncia [Mainz]; uma parte do Piemonte, a maior parte da Catalunha e toda Navarra.

Tão grandes triunfos, e nunca até ali vistos exacerbaram as intenções maquiavélicas de Pitt, que não atendendo senão as suas pretensões, e não as razões de justiça e utilidade da Inglaterra, e não obstante, a paz que a França faz com a Prússia e Toscana, Pitt ousou com sagacidade apresentar-se no parlamento inglês fazendo exigências para continuar a guerra com a república vitoriosa: nesta sessão uma das mais memoráveis do parlamento inglês, — como diz um escritor —, tanto pela importância da questão, como pela eloquência de Fox e Sheridan, Pitt apresentou pretensões da França para com a Inglaterra, e ódio daquele para esta, acendeu os brios nacionais, julgou pouco honroso, imprudente e impossível negociar com a França, e dando quebra aos triunfos da bandeira republicana não só empregando o descrédito, como também todos os meios ardilosos que ousam sugerir a imaginação do ambicioso, e sobretudo surdo a voz da razão fez falar a coroa a linguagem dos seus cálculos.

Tudo conseguiu, não obstante ser contra a vontade dos amigos da paz e da revolução francesa, — os quais animados com grandes fatos guerrearam ao ministro, — mostrando-lhe que nunca a França declarou ódio a Inglaterra, senão quando esta manifestou o criminoso intuito de roubar aos franceses a liberdade, de intervir na forma do seu governo e de acender entre eles a guerra civil.

Era então bem pequena a oposição no parlamento inglês, — não excedia de vinte membros, porque compreendiam o sentimento do povo inglês, e as pretensões de Pitt. Lá na Inglaterra não se disse, que a oposição era amiga dos estrangeiros, que não tinha nacionalidade etc., Pitt só era quem apelava para os sentimentos de nacionalidade, ficou só, porque o povo inglês não o acompanhava, e se Pitt tudo conseguiu deve atribuir-se a essas maiorias numéricas, que como entre nós, não passam de maioria parlamentar, e nada mais.

Sejamos francos, apareçam os ministros com lealdade, desenvolvam o interesse social, e tomem o partido do justo, — deixem-se de invocar brios, e fazer valer pretensões, que não devem, nem podem existir, e respondam: — Quem acende entre nós brasileiros a guerra civil? Quem procura intervir em nossas questões políticas internas e externas? Qual é a causa de estar o Brasil em apuros com a Inglaterra? Quais são os contrabandistas? Outros que não os ingleses, — os que lhes damos hospitalidades e proteções, os que são ingratos e cavam a ruína do Brasil: — os Portugueses!! Conseguintemente é um ardil pérfido querer o governo atribuir à nobre oposição o que só e bem cabe aos amigos dos contrabandistas.

Na presente questão, todo brasileiro sensato e honrado deve ser inglês, porque da parte do nosso governo está o erro, e a causa da justiça tem muita força. Fale-se claro, desmascare-se a hipocrisia, apresentem-se os brasileiros tais quais são, não oculte-se a verdade de um fato para o qual os brasileiros honrados não concorrem, desta sorte mereceremos os aplausos das nações!

Deixemos as reticências, digam todos ao parlamento brasileiro, que se expresse claro, e dê largas a uma questão que nos traz inúmeros benefícios, — aí é que deve haver espírito de nacionalidade, e não incursos ao governo; tomem contas a este, porque não se defendem de uma acusação antiga de que a parcialidade política que hoje governa protege a introdução de africanos livres no Brasil? porque não têm feito ilustrar ao geral pensamento errôneo, que há no Brasil de que a agricultura sem escravatura não pode viver, ou por outra, como dizem as claras os contrabandistas — tirado do Brasil a escravatura ele perecerá?

O governo tem muitos meios a seu dispor, tanto para ilustrar o pensamento errôneo, que é admitido como verdade, como tem força para reprimir os traficantes. Destarte o Brasil lucrava mais do que neste viver atual de reações pessoais, de punições políticas; — o povo seria mais moralizado com memórias, ou discursos acerca do prejuízo e do imoral e errôneo pensamento da escravatura, do que com essas discussões só de recriminações? com a punição dos traficantes de escravatura, do que com esses degredos políticos, com esses recrutamentos em massa, enfim com essa imoralidade do poder.

Escravos na Senzala

No tempo em que foi proibido a introdução de africanos livres no Brasil, o nosso comércio, como ainda hoje, pertencia todo aos portugueses, foram eles, que mesmo no começo da proibição abusando da hospitalidade, calcando aos pés as nossas leis e menosprezando as nossas autoridades se entregaram a esse comércio ilícito a desumano; ao princípio era um verdadeiro monopólio de certas personagens portuguesas, depois tiveram necessidade de estender os benefícios de semelhante comércio para os seus patrícios; para isto organizarão uma sociedade comercial no Rio de Janeiro, e espalharam filiais pelas províncias, e a muitos anos sabe-se perfeitamente que estas associações tem de dia em dia, e em certas épocas aumentado espantosamente, e zombado das autoridades do Brasil, porque com o dinheiro corrompem e quem não tem dignidade; — verdade amarga, e vergonhosa de dizer, porque é força apresentá-la, já que desgraçadamente sofremos atribuições.

[O texto teve continuação na edição do jornal A Imprensa, de 29 de outubro, três dias depois].

Deixando de falar do que há pelas províncias, limito-me só a apresentar fatos que se dão nesta província acerca do tráfico, e em proporção se avaliarão os que se dão no Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e Maranhão etc. etc.

Desde muito tempo, que nesta província há uma sociedade de contrabandistas portugueses; todos aqui sabem que os portugueses — José Antônio de Mendonça, Sacavem & Companhia, Andrada, Bexiga ou Leão & Companhia, Cutrim, Gaveta e Faustino fazem parte desta comercial associação; que recebendo impulso do grande e estrepitoso foco de contrabandistas da Bahia, aqui escandalosamente dão quotidianos desembarques e negociam as claras, é isto tão cediço e tão escandaloso, que já não causa mossa, e nem eles levaram a mal publicar seus nomes, visto que eles mesmos negociam em tal tráfico publicamente.

Sendo o comércio desta cidade pertencente todo aos portugueses, e tomando eles viva parte, por vergonha dos partidos, em a nossa política, desgraçadamente alguns ou quase todos têm adquirido influência e posições oficiais, a ponto tal, que o brasileiro, e máxime alagoano, nada pode fazer, e é afoito quem ousa afrontar o poder destes contrabandistas, mas conta logo com a sua ruína.

Durante a administração do Exm. Sr. Dr. Peixoto de Brito o poder desta sociedade como que esfriou de sua influência, consta-me, ou é público, que um alagoano sabendo dos pormenores e circunstâncias deste comércio, e quais os traficantes e dos meios que dispunham, denunciara em segredo ao promotor público desta cidade, então o Dr. José Ângelo Márcio da Silva, (hoje vítima do poder da época), porém a denúncia era tal, que na ausência de provas positivas, e de quem se atrevesse impugnar tal associação, embaraçou o procedimento da justiça, pelo que o promotor tudo denunciou ao Exm. presidente, e em reserva se tomaram grandes providências, mas respirando elas, os contrabandistas para não arriscar procuraram novos meios de introdução, e com tais cautelas e em tão pequeno número, que por diversas vezes foram iludidas as tentativas de punição, não havendo muitas vezes até vestígios.

Subiram porém os homens de 29 de setembro, as coisas políticas mudaram e logo os contrabandistas tomaram gás, e sem mais reservas em outubro (de 1848) deram dois desembarques mesmo no Porto desta cidade (Jaraguá) em novembro outro, e em dezembro três sendo um em Coruripe, pelo que o promotor denunciou ao presidente e chefe de polícia, porque de tudo estava informado.

Nenhum resultado teve a denúncia, senão a publicação dela para não ficarem mal, e os contrabandistas reuniram-se para fazer guerra de morte ao ex-promotor, o qual compreendendo os seus deveres, e querendo concorrer para pôr termo aos escandalosos crimes intervinha com o que estava de sua parte.

Os contrabandistas tomaram gás e o contrabando voltou ao seu antigo pé com mais excesso, e sendo demitido o nosso patrício, porque havia tomado parte como dizem na rebelião de Pernambuco, tomou também a peito guerrear o contrabando já em artigos para o Correio Mercantil da corte, e já para o Século da Bahia, publicando todos os contrabandos de africanos que aqui se davam; e podem todos correr a coleção dos ditos jornais de 1849 e verão todos os meses na correspondência desta província a publicação de três contrabandos.

Escravos na colheita de café no Vale do Paraíba, em 1882. Foto de Marc Ferrez – Coleção Gilberto Ferrez – Acervo Instituto Moreira Salles

Este grande de serviço prestado ao Brasil inteiro pelo nosso patrício ainda que lhe acarretasse os ódios dos contrabandistas, despertou os ânimos dos alagoanos, os quais até aí não ousavam fazer a menor observação, temendo o furor e poder dos contrabandistas; mas daí em diante uma reprovação geral e pronunciada contra tão grandes quanto multiplicados escândalos, e embora nada se conseguisse, porem ao menos a esse alagoano perseguido deve-se o ódio que os bons alagoanos tem a semelhante tráfico.

Durante a presidência do coronel Aguiar subiu o escândalo a ponto tal, que os desembarques eram dados em Jaraguá no meio-dia e com toda publicidade; vendiam africanos publicamente e os próprios delegados e subdelegados de polícia tinham e suas casas africanos para venderem de comissão.

O Dr. José Ângelo não obstante a grande perseguição, e dentro mesmo da enxovia da cadeia desta cidade, opunha-se e bradava contra os escândalos, e não cessava de publicá-los pelos jornais.

Sem embargo os escândalos sucediam os escândalos, e naquela época de terror e espionagem em que as autoridades só vinham para punir o crime de rebelião, a nada se moviam; e somente em junho de 1849 às duas horas da tarde quando achava-se o povo desta cidade apinhado na Ladeira de Palácio [atual Praça dos Palmares] a ver uma escuna de Sacavem & C., dar desembarque, foi que o presidente mandou o chefe de polícia — Francisco Joaquim Gomes Ribeiro ver se podia privar o escândalo, o qual chegando na praia de Jaraguá desembarcavam do escaler da escuma 88 africanos livres, e como nesta ocasião não fosse possível deixar passar, fez a presa; bem assim a tripulação e a dita escuna foram também apreendidos.

Mas o que aconteceu? Os portugueses desenvolveram os seus poderes, e o presidente esteve a entregar os africanos, se não fora o clamor público; consultou ao ministério, porém viu-se tão apertado, que antes de chegar a decisão do Rio, ele remeteu os africanos para a Corte, sendo este passo reprovado pelo governo geral, que mandava distribuir na província, isto é entregar aos contrabandistas.

Note-se que o presidente remeteu os africanos sem esperar pela decisão, por que os contrabandistas foram roubar os africanos no quartel desta cidade onde estavam, que a não ser o capitão Viveiros, a quem quiseram comprar sua honra, eles teriam levado o roubo avante; porém o honrado capitão não só espalhou a peita, como tomou em conta vigiar os africanos e frustrar as intenções dos contrabandistas.

Resultou que o capitão foi logo demitido e a portuguesada a guerreá-lo de morte: resultou mais, que o presidente andava dando satisfações a um e outros contrabandistas, resultou ainda mais, que o chefe de polícia teve medo de tirar o processo, andou de uma para outra autoridade, e até hoje tal processo não se tirou.

Os contrabandistas andavam soltos e rindo-se e zombando das autoridades, a tripulação foi solta e a escuna entregue ao seu dono, não obstante a vistoria e o testemunho ocular da população desta cidade que assistiu por assim dizer ao desembarque; e foi tal a mofa dos contrabandistas, que diziam que os africanos tinham vindo da Bahia no escaler da escuna!

E que tal?! Isto deu-se aqui e foi tudo publicado; e o governo não deu a menor providência e até hoje nem processo, nem punição, enfim um escândalo estrepitoso foi o resultado de tudo.

Tanto aviltamento e escárnio nunca aqui se deu em tempo algum, maior aviltamento do poder da justiça nunca foi visto; e o governo geral ignorava? Não. Era tudo publicado e nada contestado! — E por que não se dirá que a proteção e a só proteção seria a causa de tanto esquecimento?!

Os contrabandistas, para que outra presa não se desse, (como que não ficassem ainda contentes), entenderão que incluindo na sociedade, ao menos como comissários, alguns alagoanos de influências oficiais e da época, estava tudo remediado, — o certo é que pensaram com tato, e na sociedade incluíram os Mendonças de Porto Calvo (já muito conhecidos neste gênero de negócio, ainda que o faziam mesmo nos escravos dos seus vizinhos, pelo que são conhecidos por l…. de esc…. [ladrões de escravos?]) o delegado de Porto das Pedras, José de Barros e Pimentel (espoleta dos Mendonças) estes eram, para o norte: e para o sul um certo influente, que não publico o seu nome, porque neste último desembarque brigou com o Bexiga, e prometeu denunciar tudo, e pois talvez emende-se, por isso contento-me só com esta declaração, e demais já todos aqui o conhecem.

Organizando assim o poder da associação desde então da praia do Gamela a praia de Coruripe ou aliás até o Penedo se faz o contrabando de africanos sem reserva e sem medo, protegido pelas autoridades, as quais ou por medo, ou por safadeza fazem até guarda aos africanos, e as vezes por comiseração dos traficantes dão-lhe alguma coisa, como aconteceu com o subdelegado do Gamela um tal João Baptista: — Assistiu a dois desembarques do Dr. Jacintho Mendonça, sendo um do sogro deste, deram-lhe dois escravos, quando os desembarques eram de oitenta e tantos.

Pelos jornais apareciam estes crimes, e até se dizia que o chefe de polícia era conivente no tráfico, lembro-me ter lido muitos artigos, que tal diziam, além de ouvir de muitos portugueses que os invejosos desenganassem-se, que eles haviam de fazer o contrabando, porque eram protegidos pelo chefe de polícia, e muita gente grande.

O certo é, que nenhuma providência se tem dado até hoje, as autoridades são as mesmas, e o contrabando continua com tanta suavidade, que é prosaico e não tem aqui influência quem não é contrabandista.

José Antônio de Mendonça, português, publicamente e às onze horas do dia em setembro do ano passado desembarcou 100 africanos, tendo vindo 107, morreram 7 no caminho, pela estrada pública seguirão 50 para o seu engenho, e 50 para o delegado de Porto das Pedras, que os vendiam de público e a quem queria comprar, ao passo que davam este, outros iguais vindo da Bahia de um português — um tal Daniel de Campos, para os Mendonças de Porto Calvo, se davam pelo mesmo tempo em Porto das Pedras, sendo um acompanhado até pelo juiz municipal de Porto Calvo.

Corria-se para um desembarque como quem corria para uma feira pública, havia jantares e vivas no ministério de 29 de setembro! Um fato bem público deu-se em dezembro do mesmo ano — o brigue de guerra Canopo deu garra a uma escuna, que nos morros de Camaragibe dava as duas horas da tarde, desembarque a 78 africanos livres, pertencentes aos Mendonças, em ocasião que o presidente o Exm. Dr. José Bento e chefe de Polícia interino passavam, que iam a caminho de Porto Calvo ver uma conspiração de rebeldes, presenciavam e até ajudavam a fazer-se a presa por terra.

Escravos na colheita do café no Rio de Janeiro em 1882. Foto de Marc Ferrez, acervo Instituto Moreira Salles

Porém o que aconteceu? o presidente foi assistir com o Dr. Jacintho, e em casa deste estava o capitão da escuna; os marinheiros da tripulação confessaram tudo, e quando falavam no interrogatório nos nomes dos Mendonças, o chefe de polícia interino Dr. Guedes Alcanforado não mandava o escrivão escrever, até dizia que não escrevesse, enfim não se tirou processo, ninguém foi punido, e se não foram entregues os africanos aos Mendonças, deva-se ao escândalo e publicidade, porém foram entregues às pessoas que concorreram para que o capitão Pedro Ivo saísse das matas, em recompensa: O governo não sabe disto? E por quem foi feita a distribuição?

Ora tantas patifarias já não são possíveis esconder: — recompensa-se serviços prestados ao governo com africanos livres! Que triste condição do governo e do servente! Este mundo está roto, e a vergonha mal com ele. E assim sucessivamente tem continuado o contrabando, e no tempo da peste da Bahia isto foi de uma maneira indizível, não havia um barco, que não trouxesse africanos bem entendido barcos dos portugueses.

O mês passado uma escuna do português Sacaven fez sinal na barra desta cidade, e logo lá foram duas barcaças, e de lá tomaram para Paripueira, e Sacavem daqui saiu e de Paripueira encaminhou-se para certo engenho… Lá esteve vendendo sessenta africanos, sendo 10 fêmeas, publicamente passavam os africanos, e os vendia de público e podia eu até dizer a quem.

Há poucos dias o Andrada recebeu uma porção, e ainda tem um restinho mesmo dentro de sua casa: o Bexiga há pouco veio de Coruripe, e ele lá não vai se não a desovar os bicudos, expressão dele; o José Antônio espera gente como diz nas cartas, que manda oferecer. E será crível que o governo ignore não só as publicações feitas, como estes fatos? Tanta ignorância não dou a tantos marmanjos: coitados, que inocentes que são os governistas, tão míopes…

Os ingleses que aqui moram bem sabem destes fatos, se não tomam parte, é porque dizem que isto pertence a honra dos brasileiros, e eles não estão na Inglaterra, e porventura não terão motivos de queixas do governo do Brasil, em vista de tantos abusos e fraudes? E qual será o juízo que se deve fazer do governo do Brasil? Qual deve ser o procedimento da Inglaterra? Porventura não terá o governo do Brasil forças para proibir e punir o tráfico?

Tem e muita, só falta vontade. Se o governo foi tão austero para punir a rebelião de Pernambuco, se empregou todos os meios bárbaros contra um crime de opinião, porque não faz o mesmo contra um crime, que rebaixa e põe o mesmo governo na triste e miserável posição de sofrer o seu abatimento, e a vergonha do tráfico? Ignora o governo quais são os contrabandistas? Não é possível: e se ignora, os desta província são estes, mande proceder contra eles, puna as autoridades poluídas pelo vil dinheiro do contrabando e verá que toma outra face, e jamais sofrerá.

Saiba-se que desde muito tempo andam os portugueses espalhando, que a Inglaterra pretende fazer guerra ao Brasil para tomá-lo em pagamento do que lhe deve o Brasil, e que só o Brasil se salvará unindo-se a Portugal, mas que em todo caso eles estão prontos para unirem-se aos brasileiros para repelirem qualquer ofensa da Inglaterra.

Ora bem se vê a bestialidade, porém não pode ter isto outro fim? Bem pensado, tire quem quiser o corolário. Seja qual for o juízo, que se fizer na questão que ocupa os ânimos pronuncio-me a favor da Inglaterra, quando não fosse pela justiça da causa, e a razão que lhe assiste, era porque os ingleses aqui estão entre nós — nenhuma parte tomam em nossas questões políticas, são alheios a pretensões, grandes capitais importam, não são contrabandistas, dão-nos exemplos de civilidade, educação e moralidade, ensinam-nos a comerciar licitamente e dão lição de sabedoria.

E os senhores portugueses fazer porventura o mesmo? Não: aqui saltam nus, sem um real e ao cabo de pouco tempo apresentam-se grandes capitalistas, e ei-los tomando parte em nossa política interna e externa; utilizando-se do § 4 preterem aos nossos patrícios; senhores do nosso comércio e agricultura tudo impõem, e de posse dos empregos públicos decidem da sorte do Brasil; apregoam que o Brasil sem escravatura perecerá, e quando qualquer parcialidade política quer pôr peias a esses escândalos, eles portugueses ateiam a guerra civil, favorecem aos brasileiros degenerados para difamarem, e até sustentarem folhas [jornais], como acontece aqui, que entre eles tiram uma subscrição para sustentarem a União (periódico) de Pernambuco, porque dizem que é a folha do partido dos portugueses: e qual é no fim o resultado? É andarem os brasileiros bebendo o sangue uns dos outros, e a guerra civil dilacerando! Exemplo terrível, condição triste e bárbara, para a qual os ingleses não concorrem.

Não sou inimigo dos portugueses, pelo nome de português, mas sim pelos fatos e escândalos, e mais que tudo atrevimento que eles ousam cometer em minha terra; limitem-se no círculo da hospitalidade que lhes damos, como fazem os ingleses, franceses, suíços etc. etc., que nenhuma queixa haverá; enquanto não, hão de ser renovados os efeitos de uma Abrilada: os brasileiros são dóceis, sofrem porém até certo ponto.

Entendo portanto, que o governo do Brasil deve compreender melhor a sua posição e os seus deveres: – altear a nacionalidade para uma causa injusta e imoral, e esquecer o ponto principal donde parte o mal é levar o Brasil ao último abismo da destruição.

O alagoano.

2 Comments on Contrabando de escravos em Alagoas

  1. Claudio Ribeiro // 16 de novembro de 2019 em 11:58 //

    Caro Ticianeli, agradeço a gentileza do encaminhamento das edições de História de Alagoas. Meus parabéns. Nesta edição, muito longa e com grande conteúdo, localizei um equívoco de digitação no parágrafo que irei colar: “Sem embargo os escândalos sucediam os escândalos, e naquela época de terror e espionagem em que as autoridades só vinham para punir o crime de rebelião, a nada se moviam; e somente em junho de 1949 as duas horas da tarde quando achava-se o povo desta cidade apinhado na Ladeira de Palácio [atual Praça dos Palmares] a ver uma escuna de Sacavem & C., dar desembarque, foi que o presidente mandou o chefe de polícia — Francisco Joaquim Gomes Ribeiro ver se podia privar o escândalo, o qual chegando na praia de Jaraguá desembarcavam do escaler da escuma 88 africanos livres, e como nesta ocasião não fosse possível deixar passar, fez a presa; bem assim a tripulação e a dita escuna foram também apreendidos.”. Nele, foi digitado 1949, em vez de 1849. Estou correto?
    Muito grato,
    Claudio Ribeiro – C. Abreu, RJ.
    Alagoano – Fernão Velho

  2. Está correto, sim, meu caro Cláudio. Agradeço por mais esta contribuição. Esse é um erro recorrente em minhas digitações. Troco a todo momento de século.

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