Carrancas do São Francisco

Carranca fotografada por Marcel Gautherot em 1946. Acervo Instituto Moreira-Salles

Detalhe de modelo de barco encontrado no túmulo de Tutankhamun, enfeitado na proa e popa com cabeças de cabras com chifres reais

Os primeiros registros de ornamentações em embarcações remontam a seis mil anos no Egito. Eram cabeças de touros estilizadas, um animal importante no misticismo dos povos primitivos.

Estes elementos também podiam representar homenagens as antigas divindades. Há ainda a possibilidade de se conceber a embarcação como um ser vivo ou o próprio deus, e por isso teria uma cabeça.

Esse animismo pode ser observado nos olhos pintados nos costados dianteiros, ali colocados para ajudar a encontrar os caminhos.

Na Idade Média, os vikings colocavam em seus barcos de guerra (drakkars) imagens de animais fantásticos, principalmente dragões. Em alguns havia também serpentes e cavalos. Essas figuras eram móveis e retiradas quando aportava em cidades amigas.

Nos séculos XIII e XIV, quase desapareceram devido as formas arredondadas das proas que passaram a priorizar suas finalidades bélicas, ali instalando plataformas.

Mesmo quando a arquitetura naval abandonou essa proa redonda, as figuras não mais voltaram à proa, dando lugar aos “castelos“. Somente no século XVI é que estas decorações retornaram, desta feita em formas barrocas.

No século XVIII assumiram a função decorativa, representando a personalidade que deu nome ao navio ou ao seu armador.

Ornamentação da proa sem proeminência

Nos Estados Unidos da América, no século XIX, estas figuras revelavam a influência chinesa e oriental nas embarcações.

Com o advento da navegação a vapor surgiu um novo estilo de proa, verticalizada. Com isso, as ornamentações sobreviveram somente nos veleiros.

Atualmente, com a forma côncava da proa, voltaram a ser utilizadas, mas com pouco relevo e sem proeminência.

No Brasil

Segundo Paulo Pardal no seu Caderno de Folclore Carrancas do São Francisco, “a origem das carrancas do São Francisco deve ter sido a imitação de navios de alto-mar, vistos nas capitais da Província da Bahia e do país pelos pequenos nobres e fazendeiros do São Francisco em suas viagens à civilização”.

Para ele, são figuras originais de tipologia zooantropológico que não se encontra em outras regiões. Ressalta ainda que não há qualquer influência das decorações navais dos povos primitivos da África ou da Ásia.

Carranca fotografada por Marcel Gautherot em 1946. Acervo Instituto Moreira Salles

Foram por muito tempo as únicas embarcações populares dos povos ocidentais há apresentarem figuras de proa. São esculturas únicas no mundo, mas já nos séculos XVIII e XIX sobreviviam somente no Rio São Francisco. Na origem eram decorativas, mas depois receberam atribuições místicas.

Segundo Pardal, foi o isolamento do médio São Francisco que permitiu a criação de um tipo de figura de proa inédito em todo mundo. Tinham olhos esbugalhados, misto de homem e de animal, com suas sobrancelhas arqueadas, expressão de ferocidade e cabeleira lembrando uma juba de leão.

Foram colocadas inicialmente nas barcas que somente começaram a navegar no Rio São Francisco nos 40 anos posteriores a independência de 1822, como registrou Richard Francis Burton, no livro de 1869 Highlands of the Brazil. A primeira delas foi construída em Penedo.

Esse modelo foi levado para o médio São Francisco onde recebeu a carranca, como anotou Edilberto Trigueiros em A língua e o folclore da bacia do São Francisco, de 1978: “Acrescentaram-lhe, porém, um esdrúxulo ornamento que não existia no símile do baixo São Francisco — a figura de proa”.

Outro pesquisador, Thomás Paranhos Montenegro, escreveu no livro A província e a navegação do rio São Francisco, publicado na Bahia em 1875, que as barcas surgiram na parte média do rio em fins do século XVIII.

Carranca fotografada por Marcel Gautherot em 1946. Acervo Instituto Moreira Salles

Paulo Pardal avalia essa datação mais correta e menciona Spix e Martius que viajaram a região entre 1817 e 1820 e citaram no livro Reise in Brasilien, de 1838, que a navegação no rio era realizada “em simples barcaças” ou em “ajoujos” (duas ou três canoas presas por traves perpendiculares), sendo barcaça a tradução para os barcos locais.

O declínio das barcas teve início com a instalação da representação da Capitania dos Portos em Juazeiro e Pirapora, que começou a exigir o cumprimento de regulamentos até então inexistente para os proprietários destas embarcações.

Substituindo os barcos surgiram as grandes canoas originárias do baixo rio, bem mais leves e viajando com vento de qualquer quadrante com boa velocidade. Sua tripulação era menor que a dos barcos, com dois ou três homens apenas.

Os barcos deixaram de funcionar totalmente na década de 1950.

Carrancas do Velho Chico

Eram conhecidas como Figuras de Barca ou, em Juazeiro, como Leão de Barca ou Cara de Pau.

Os primeiros registros da expressão carranca são de 1888 em um livro publicado por Antônio Alves Câmara e Durval Vieira de Aguiar.

Carranca fotografada por Marcel Gautherot em 1946. Acervo Instituto Moreira Salles

Paulo Pardal afirma que “as primeiras carrancas datam de 1875-1880, embora seu uso no médio São Francisco só se tenha generalizado neste século [XX]”.

No livro Caçando e pescando por todo o Brasil, do início da década de 1940, Francisco de Barros Jr assim descreveu as carrancas:

“Uma estranha particularidade, também somente observada neste rio, é a carantonha, que, à guisa de ‘rostro’, enfeita as proas, se enfeite se pode chamar a coisas tão horrorosas.
São figuras teratológicas, que representam cabeças de animais com cara de gente e vice-versa. Quanto mais horripilante é a figura, tanto melhor. As esculturas são coloridas, predominando as cores vermelhas, azul e preta. Uma que muito me impressionou, pela perfeita concordância dos elementos heterogêneos reunidos, foi uma cabeça de carneiro ornamentada de grandes chifres naturais e que tinha a cara de homem barbado, com orelhas de burro e nariz de porco! A figura era pavorosa, mas tudo tão bem ajustado, que nos recordava certos tipos muito nossos conhecidos…
Os autores são inegavelmente artistas, mas só uma imaginação doentia será capaz de criar e harmonizar características tão dessemelhantes.
São curiosos espantalhos, mais curioso ainda é, porém, o motivo desses monstrengos. São propositadamente compostos para… afugentar o diabo, permitindo-lhes viagens seguras e felizes!”.

No final do século XIX, quando surgiram as carrancas, mais de 200 barcas navegavam o São Francisco. Paulo Pardal avalia que sequer metade usava a carranca. Ele atribui isso, em parte, por serem poucos os escultores populares na época.

Carranca fotografada por Marcel Gautherot em 1946. Acervo Instituto Moreira Salles

Marcel Gautherot, que percorreu todo o médio São Francisco entre 1942 e 1945, declarou que viu somente cerca de 30 carrancas. Foram suas fotografias que despertaram o interesse por estas esculturas.

Algumas destas esculturas estão hoje em coleções particulares ou de museus. São peças muito raras e valiosas. Foram adquiridas quando as barcas movidas a varas foram aposentadas no início da década de 1940.

Não eram reconhecidas como arte popular. Isso só aconteceu a partir de 1954, durante os festejos do IV Centenário da Cidade de São Paulo, quando uma dezena delas foi exposta no Parque do Ibirapuera.

Pardal avaliou que as figuras de barca são “as peças de arte popular mais originais e as únicas de solução genuinamente brasileira, em nosso vasto folclore artístico”.

Outro estudioso do assunto, Vasconcelos Maia, analisou o valor artístico destas peças em um texto publicado no Diário de Notícias de Salvador em 22 de fevereiro de 1959: “Têm riqueza de concepção, ousadia de formas, liberdade de execução, trazendo viva, como na carne, em sua madeira dura, por instrumentos rudimentares trabalhada, todo o esplendor da coisa brasileira. É a madureza e a pureza duma autêntica estética primitiva. Sua forma é áspera como suas soluções. E transmite, com o vigor de sua arte, todo o espírito inquieto, supersticioso e místico de um povo plástico por excelência”.

Sobre a localização das barcas com suas carrancas, Paulo Pardal as situa no médio São Francisco considerando que no alto deste rio quase que não existia navegação. No baixo rio, entre Piranhas e a foz, ele observa que existia muita navegação de grandes canoas, “semelhantes às barcas, que entretanto jamais apresentavam carranca”.

Em última análise, “só surgiram carrancas no médio São Francisco porque só nesta região concorreram centros de cultura, com alta densidade demográfica e forte comércio e, finalmente, pelo senso de regionalismo resultante do desejo de emancipação”.

As últimas carrancas no médio Rio São Francisco foram vistas no início de 1973.

Carrancas Vampiras encontradas em mercados de artesanato de todo o Nordeste

Hoje as carrancas sobrevivem, entretanto bem afastadas da sua funcionalidade original. Utilizadas como peças ornamentais, as chamadas “carrancas pedestais” surgiram por acaso durante a exposição no IV Centenário da Cidade de São Paulo, em 1954.

Para serem mostradas ao público de forma totêmica, foram cerradas dos seus barcos. Como algumas peças foram incluídas no acervo do museu e outras em coleções particulares, logo surgiu o interesse de se produzir carrancas exclusivamente para esse fim.

Assim, os mestres carranqueiros se voltaram para o mercado de artesanato, disseminando a arte e formando novos mestres.

Em Alagoas, as carrancas surgiram somente nesta fase, quando santeiros famosos também passaram a esculpir estes totens, principalmente na cidade ribeirinha de Penedo. O expoente desta arte hoje é Antônio Francisco dos Santos, o mestre Timaia, que aprendeu a arte com o mestre Antônio Pedro dos Santos.

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