A lenda do Gogó da Ema

Gogó da Ema na década de 1950. Foto de José Assunção, colorizada por Ticianeli

Por Edberto Ticianeli

Luar sobre a Ponta Verde. Colorizado por Ticianeli

A noite tinha sido de muita chuva e ventos fortes. O casebre chegou a perder parte de sua cobertura, mas resistiu bem.

Amanheceu estiado e quando o sol lançou seus primeiros raios sobre a praia do Carrapato, Guaracy já estava olhando os estragos provocados pela borrasca. Nada que umas duas palhas de coqueiros não pudessem resolver.

Mayara e Nina precisavam ser protegidas para não adoecerem. Era nesse período de chuvas que os tais dos miasmas levavam os mais expostos.

Além disso, tinha de cuidar bem da palhoça cedida pelo seu patrão, o Chico Zu, dono daquele sítio e de alguns currais de pesca na curva entre a Pajussara e o Carrapato.

Feito os remendos, foi ao curral próximo ao Farol da Ponta Verde para ver se o agito dos ventos provocara algum dano. Para sua surpresa, as estacas continuavam todas firmes.

Já voltava para casa quando lhe chamou a atenção algo que se debatia em uma das poças d’água nos arrecifes. Se aproximou e viu que era um filhote de peixe-boi.

Sua primeira reação foi procurar pela mãe que deveria estar nas proximidades. Não a viu e imaginou que durante o tempo ruim eles se desgarraram. Sabia que sem o leite dela, o filhote não viveria muito tempo.

Da praia, sua filha Nina olhava curiosa tentando entender o que ele fazia sobre o arrecife. O pescador resolveu ir buscar a filha para que conhecesse aquele raro tipo de peixe, que mamava como gente.

Postal do Gogó da Ema. Colorizado por Ticianeli

A menina ficou espantada com a história de peixe que mama, mas gostou mesmo foi da carinha de tristeza do pequeno animal. Sabendo que o peixe-boi logo morreria, foi buscar um pouco de leite em casa para dar a ele.

Utilizando a mamadeira que deixara de usar poucos anos antes, lentamente Nina se aproximou do filhote e lhe ofereceu o alimento. Ele rejeitou, mas se aproximou e se aninhou em seu colo, como que buscasse a sua proteção

Preocupado com a maré que já começava a subir, Guaracy pediu a filha para deixar o peixe-boi ali na esperança que voltasse a encontrar a mãe quando as águas estivessem mais altas.

Nina se despediu do animal e, chorando, disse que ia ficar na praia acompanhando o mar cobrir as pedras e libertá-lo.

Vieram as primeiras ondas e ela não viu mais o peixe. Alongou o olhar para o horizonte e ficou a imaginar seu feliz reencontro com quem lhe daria de mamar.

Comparava essa alegria com o sentimento de ver a mãe voltando de Maceió após fazer compras. Sempre lhe trazendo uma bonequinha de pano ou um doce.

De repente, voltou a chorar convulsivamente. Mayara, que acompanhava a filha de longe, correu até ela e quis saber a razão das lágrimas. A menina, sem conseguir falar, apontou para as ondas próximas onde rolava o peixe-boi sem vida.

Sua mãe tentou consolá-la dizendo que era um filhote de garaguá, o nome do peixe-boi para os índios, e que a mãe dele iria sempre voltar ao local onde perdera o filho na esperança de encontrá-lo.

Nina pensou um pouco e disse que então ele deveria ser enterrado próximo à praia e aos pés de um coqueiro para que a mãe o visse de longe quando voltasse. Assim fizeram. Escolheram um coqueiro ainda muito jovem e deixaram o pequeno corpo sem vida em uma cova próxima as raízes da planta.

Os dias se passaram e em todos eles Nina visitou o túmulo improvisado do peixe-boi. Lá passava bom tempo conversando com ele, lhe dizendo que logo sua mãe voltaria para buscá-lo.

Após alguns meses, estranhamente o coqueiro começou a se curvar em direção ao mar e Nina falou para sua mãe sobre essa deformação, que aumentava rapidamente.

Como sempre, Mayara tranquilizou a filha lhe dizendo que o peixe-boi agora vivia no coqueiro e que ao ver a mãe passar ao largo, se esforçava para segui-la.

Anos depois, o tronco continuava a se curvar ao ponto de suas palhas já estarem arrastando nas areias quentes da Ponta Verde.

Mayara tranquilizava a filha explicando que o peixe-boi havia desistido de procurar a mãe no mar e agora voltava seus olhos para a terra, como se quisesse esconder sua tristeza.

Guaracy acompanhava a conversa das duas ao lado de um pote onde tinha tirado água para beber. Aproveitou para avisar que o sítio do velho Chico Zu havia sido vendido e que eles teriam de deixar aquela morada no dia seguinte.

Começavam a abrir ruas naquela parte da cidade e várias casas estavam sendo construídas. Pajuçara, Ponta Verde e Jatiúca passavam a ser bairros residenciais de Maceió, sobrando poucos espaços para os antigos sítios de coqueiros e vilas de pescadores.

Antes de deixar a palhoça onde nascera, Nina foi conversar com o seu velho amigo. Chorando, se despediu dele dizendo-lhe que não desistisse de procurar sua mãe.

— Ela agora mora no céu, onde também estão as estrelas. Tire suas palhas do chão e vá em busca dela lá no alto.

Beijou o coqueiro encurvado e partiu.

***

Mirante do Gogó da Ema. Colorizado por Ticianeli

Muitas décadas depois, uma senhora idosa desembarcou no porto de Jaraguá acompanhada por sua neta. Vinham de São Paulo para visitar parentes.

Assim que chegaram ao carro de aluguel que as conduziria ao Bella Vista Palace Hotel no Centro da cidade, a avó pediu ao motorista que antes as levassem até à praia da Ponta Verde, onde disse ter deixado um amigo há muito tempo.

No local, a senhora desceu do carro e começou a olhar em volta como se estivesse procurando algo. O motorista se dirigiu a ela e perguntou o que buscava. Soube que era um coqueiro encurvado.

— A senhora está procurando o Gogó da Ema? Lamento, mas ele caiu em 27 de julho de 1955 por causa do avanço do mar. Tentaram salvá-lo, mas não conseguiram.

Em seguida levou a passageira e sua neta até próximo à praia e apontou para um tronco caído dentro do mar.

— É ele mesmo, o meu garaguá —, reconheceu-o Nina. Olhou demoradamente para o velho amigo e logo estava chorando. Recordava dele ainda pequeno, quando conversavam e a brisa da tarde soprava sobre a Ponta Verde.

Vendo a avó em prantos, a neta se aproximou e quis saber a razão do sofrimento dela. Ouviu toda a história, de como nasceu a profunda amizade entre ela e o coqueiro torto.

— Vó, não chore. Não foi o mar que o derrubou. Foi a mãe dele que voltou e o arrastou para as águas, onde sempre foi a morada deles.

Nina enxugou os olhos, olhou para o mar da Ponta Verde e entre as ondas viu perfeitamente um peixe-boi com seu filhote nadando tranquilamente.

Durante o resto de sua vida, ela afirmou que um deles tinha uma imperfeição no corpo, muito parecida com as curvas do pescoço de uma ema.

 

Gogó da Ema em 1954. Colorizada por Ticianeli

5 Comments on A lenda do Gogó da Ema

  1. Alvaro Guilherme Altenkirch Borba Júnior // 27 de julho de 2020 em 14:33 //

    Linda história!

    Infelizmente o mundo está ficando sem poesia

  2. ANGELA BRAZ // 27 de julho de 2020 em 17:36 //

    EU TINHA UMA TIA QUE VIAJAVA TODOS OS ANOS E NOS TRAZIA PRESENTES DAS VIAGENS DENTRE ELES, POSTAIS DOS LOCAIS. UM DELES QUE SEMPRE ME ENFEITIÇOU FOI O DO “GOGÓ DA EMA. ANOS MAIS TARDE FUI MORAR EM PONTA VERDE, MACEIÓ E SEMPRE VISITAVA O LOCAL. VERDADEIRO PARAÍSO ENCANTADO!

  3. Kariyel Junior // 28 de julho de 2020 em 08:51 //

    Nessa última foto vê-se uma lage de concreto com seus puxadores, hoje ela está enterrada na areia aonde ficava o gogó da Ema, só as vezes quando a maré fica muito agita que retira de lá a areia e se pode ver essa lage. Hoje estou longe deste lindo lugar, mas foram 26 anos morando ali pertinho e quase todos os dias passava por ali caminhando pelas areias desta linda praia.

  4. Adélia M.A.Magalhães // 28 de julho de 2020 em 09:21 //

    Uma lenda ecantadora e perfeitamente compreensível.Adelia
    Conheci o histórico coqueiro
    quando caído nas areias…

  5. Historia linda e emocionante; e triste tbm.

Deixe um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*