A Festa dos Martírios

Igreja dos Martírios em 1911. Foto de Luiz Lavenère

Félix Lima Júnior

Largo dos Martírios no início do século XX

No seu trabalho sobre Maceió – “Cem anos de vida social” – informa Manoel Diégues Júnior que a festa em honra a Bom Jesus dos Martírios, velha de mais de cem anos, era anunciada, nos meados do século passado, numa evidente profanação, por bandos mascarados. Reproduz uma notícia publicada no Diário das Alagoas, de 24 de julho de 1861:

“No dia 4 de agosto próximo futuro haverá bandos de mascarados para anunciar a festa do Glorioso Bom Jesus dos Martírios”.

No aviso aludido informava-se ainda ao público que no pátio dos Martírios não se permitiria o ingresso dos escravos, durante as solenidades… Os cativos não podiam, para esquecer os seus sofrimentos, distrair-se um pouco com os fogos de vista, os cosmoramas, a retreta, os anjinhos da procissão…

O Coronel Levino Costa, escrivão do júri e das execuções criminais, relembrava, em 1918, pouco antes de morrer, certo delegado de Polícia de Maceió, que, no fim do século XIX, não consentia que os moleques se sentassem nos bancos das praças quando nelas havia retreta. Os bancos — afirmava ele, convencido — “eram para os que pagavam impostos”, como se todas as pessoas, mesmo as mais pobres e mais modestas, não contribuíssem, direta ou indiretamente, para os cofres públicos…

Última década do século XIX. Em princípios de julho, mal terminados os festejos joaninos, a população de Maceió — de Maceió, não! de grande parte do Estado de Alagoas — começava a falar na festa dos Martírios e a se preparar para ela. Os pobres pais de família, os maridos sem grandes recursos, os senhores de engenho e proprietários agrícolas no Pilar, São Luiz do Quitunde, Atalaia, Santa Luzia do Norte, Alagoas, Murici, Viçosa e União, torciam as orelhas com os pedidos de dinheiro para vestidos, chapéus e sapatos, pois somente deixava de comparecer à festa quem estava doente, de luto ou na pindaíba

Esses festejos foram relembrados num livro de versos futuristas do dr. Virgílio Guedes, publicado em julho de 1930, com prefácio do saudoso poeta conterrâneo dr. Jorge de Lima.

Naqueles tempos o largo dos Martírios vivia abandonado, cheio de jurubebas e mussambê, com poças de lama aqui e ali. A Intendência, porém, nos começos de outubro mandava limpá-lo cuidadosamente. Mal se iniciava o mês de novembro construíam-se dois coretos para as bandas de música Minerva e Artistas.

A Sociedade Filarmônica Minerva, com sede à rua do Comércio, 111, mais ou menos onde negociam hoje [1956] Carvalho & Pedrosa, era dirigida, em 1896, pela seguinte diretoria: João Martins Ferreira, presidente; Serapião Camerino, vice; Adolfo Guimarães e Leopoldo Macêdo, secretários; Manoel Rodrigues de Oliveira Lima, tesoureiro; José Valente, arquivista; Justino Figueredo e Macário Vieira, diretores. Regia a música o professor Benedito Silva, Benedito Pistom, como era conhecido.

Igreja dos Martírios em 1905. Foto de Luiz Lavenère

A diretoria da Sociedade Recreio Filarmônico Artistas era a seguinte: Cel. Jacinto Paes Pinto da Silva, presidente; Cândido de Almeida Botelho e Afonso Vasconcelos Gonçalves, diretores. A sede, ao que me informaram, era na entrada da Cambona (rua General Hermes). O mestre da banda de música era o professor Valério Pinheiro.

Ambas desapareceram com o século XX.

Depois dos coretos iam surgindo os botequins para os caldos de cana do Antônio França Morel e do Sabino; o cavalinho do Petronilo, com um realejo mais velho do que a Sé de Braga, assassinando trechos do Barbeiro de Sevilha, do Guarani ou d’A Africana; a Casa Inglesa, onde se bebia esplêndida gengibirra; a mesa do leilão em benefício da igreja de Bom Jesus. Certa noite apregoaram uma surpresa, afinal arrematada depois de muitos lances. Era uma caixa de sapatos, enfeitada de papel dourado, na qual encontraram uma ninhada de oito ratos recém-nascidos…

A meninada corria ansiosa para o cosmorama do Pedro Vandeval, localizado no andar térreo daquele velho sobrado junto ao Palácio do Governo, onde está hoje, mal instalada a Prefeitura de Maceió. A entrada custava 100 réis. Exibiam-se vistas estrangeiras, através de uma empanada de algodãozinho da fábrica de Fernão Velho.

Durante a festa, o cruzeiro, em frente à igreja, era ornamentado diariamente com flores naturais. À noite iluminavam-no com velas e lanternas de papel de seda. No largo enfiavam ouricuris arrancados no Peperipedra, no Pau d’arco, no Reginaldo, na Chã de Bebedouro, neles colocando lanternas e bandeiras de várias cores.

Organizavam-se as comissões encarregadas dos festejos de cada noite: dos solteiros, dos casados, dos funcionários públicos, do comércio de Maceió, do de Jaraguá, das moças, dos artistas. Pelo Correio Mercantil, de 17 de novembro de 1895, a comissão encarregada da noite dos caixeiros — Júlio Lobo, Manoel Souto Fontan e José Maria de Melo — apelava para os demais membros da classe afim de contribuírem para o maior brilhantismo das solenidades.

Com a igreja repleta, às 7 1/2 da noite, iniciava-se a novena, com orquestra dirigida pelo mestre capela José Barbosa de Araújo Pereira, residente à rua da Floresta, n°. 7. As músicas tocadas anualmente eram as mesmas, jamais foram mudadas. O Capelão era o padre Manoel Antônio da Silva Lessa, que morreu Monsenhor. Servia como sacristão “seu” Liberato, que tinha um parafuso de menos ou muito frouxo, e de quem o comendador Firmo Lopes até pouco tempo narrava coisas incríveis…

Depois da novena saíam os devotos, com os filhos pequenos, para comprar sequilhos, broas de goma, alfenim, manuês, cocada, roletes, pão-de-ló, queijadinha, amendoim cosido ou torrado, pintinguirra nos tabuleiros das pretas vendedoras, iluminados com mexiriqueiros de querosene, dos quais se desprendia terrível fumaça, enquanto os foguetes subiam aos céus, com risco de furar a cabeça de quem se divertia, como aconteceu, certo ano, com distinto moço de conhecida família.

No domingo celebrava-se missa cantada com grande solenidade e muitas girândolas de foguetões, além de bombas em quantidade. Às 4 da tarde iam chegando as irmandades, alertadas pelos sinos que batiam, que chamavam, desde às 3 horas.

Recepção ao presidente da República Affonso Pena em 1906. Foto de Luiz Lavenère

Aparecia a do Livramento, vindo pela rua da Boa Vista, com opa azul-celeste: Sidronio Herculano de Santa Maria, Júlio Lopes Ferreira Pinto, Antônio Lopes Viana e outros.

Na de São Benedito, entrando no largo pela rua do Apolo, viam se, entre outros, os seguintes irmãos: Leonencio Novais de Castro, Noberto Braga, João da Silva Antunes.

A de Nossa Senhora do Rosário, com opas amarelas, vinha lentamente pela rua do Sol: Manoel Simões, único sirgueiro da cidade; mestre Félix Camões, ganhador de profissão, que tinha uma vista perdida, o que justificava a alcunha; Olímpio Raposo, muito magro, proprietário de um sebo afreguesado; Júlio Mesquita, ensaiador de pastoris, antecessor do Severiano Cândido; Joaquim Francisco Moreno, carteiro dos Correios e diretor do jornal “O Trocista“.

Pela mesma artéria surgia depois a confraria do SS. Sacramento: Dr. Sócrates de Morais Cabral; major Semeão, que residia no Jacutinga; Dr. Manoel Lopes Ferreira Pinto, recém-formado; Antônio Pinto; Mestre Teodósio, sapateiro na rua do Comércio, que fora rico e tudo perdera, sendo na época o fornecedor dos mais finos calçados à parte rica da população; Braz Prospero Jeová da Silva Caroatá, subdelegado do Farol, que se encarregava de arranjar papéis para casamentos.

A dos Martírios estava formada na sacristia: Firmo da Cunha Lopes, futuro comendador pela Santa Sé; Dr. Francisco Pontes de Miranda; Joaquim Pereira da Silva; Francisco José dos Passos, marceneiro, com oficina na rua do Sol, que seria substituído, na irmandade, pelo filho, telegrafista Joaquim José dos Passos: Hemetério de Vasconcelos Bringuel; José Augusto da Silva Cardoso.

Saía a procissão, ao repicar dos sinos, sendo acompanhada pelo Governador do Estado, Secretários, Intendente Municipal, altos funcionários, além da guarda de honra do Batalhão Policial, com banda de música, enviada pelo comandante, Coronel Joaquim Rodrigues Pereira, veterano do Paraguai; e muitos anjos, além de pessoas com os pés descalços, em pagamento de promessas.

Ao passar o cortejo em frente ao atual Palácio do Governo, então em construção, Lucio Suteriano, Voluntário da Pátria que fizera a campanha contra Solano Lopez, já muito bêbado, encostado a um poste da Companhia de Luz, gritava, repetindo o que dissera muitas vezes sob a influência do álcool: “No Brasil não há soldados suficientes para prender todos os ladrões. Sou Liberal! Viva o Imperador! “Perto dele, também alcoolizado, Elias Bacalhoada ridicularizava o “Pensamento”, tipo popular que tocava, na sua flauta recém-lavada na sarjeta, a última valsa do Benedito Pistom.

À meia noite soltavam os fogos de artifício, fabricados por Agostinho da Costa Mendes, na rua dos Fogueteiros, Ildefonso de Araújo Lima, José Correia de Araújo, Ricardo Francisco da Silva, artistas mais conhecidos e mais afreguesados da capital, além dos vindos de Alagoas e do Pilar, produtos das oficinas de Augusto José Amancio, Ernesto José da Costa, Matias Gomes do Nascimento e outros pirotécnicos. Primeiro punham fogo nas rodas e nos bonecos, logo depois num navio que corria num arame, tudo isso no meio de uma fumaceira infernal e da barulhada, assovios, gritos e vaias dos moleques, quando enguiçava uma das peças. Terminava com um grande painel, no qual aparecia a efígie de Bom Jesus, enquanto repicavam os sinos do templo fronteiro.

Em 1891, governando o Estado o coronel Pedro Paulino da Fonseca, era chefe de Polícia o dr. Francisco de Paula Leite e Oiticica. Não havia entusiasmo, havia loucura pelas duas bandas de música, acima citadas. Cada qual tinha o seu grupo de admiradores, de entusiastas, numa loucura coletiva. Pessoa alguma podia ser neutra: tinha de optar por uma delas, se não queria ser apontado como inimigo das duas…

Praça dos Martírios no início do século XX

Na noite do domingo, depois da procissão e dos fogos, foi aumentando o entusiasmo, os ânimos foram se exaltando. As músicas tocaram sem parar, sem repetir partitura, num desafio sui-generis… De repente explodiu o barulho — correrias, pancadas, quedas, gritos, o diabo! Um exaltado partidário da Minerva, que era a melhor das duas, incontestavelmente, armado com a lança do estandarte, invadiu o coreto, onde a outra tocava, tentando furar o bombo, no que foi impedido pelo sr. Manoel Boaventura, que apanhou terrível sova, adoeceu dos pulmões, em consequência, e morreu meses depois. As casas próximas, da rua do Sol, Boa Vista, Comércio e Apolo se encheram dos que fugiam receosos, inclusive de músicos, procurando abrigo seguro. No outro dia debaixo da cama do sr. Honório de Albuquerque, encontraram um trombone

Às 10 da manhã da 2ª feira ainda tocavam as duas músicas e ninguém podia prever como terminara a disputa. Interferiu sensatamente o chefe de Polícia e saíram ambas ao mesmo tempo, tocando. Acabara-se o barulho…

Meio dia, sol a pino. O sr. Manoel Gonçalves Martins, português estabelecido com uma padaria na rua do Comércio, perto do largo, ouviu uma gritaria e distinguiu bem o seu nome. Foi ver que era, saber quem o chamava em altos brados. Ao chegar ao meio do largo soltou boa gargalhada: era o Giovanni Puzzi, engraxate italiano, filho legítimo do Deus Baccho, que ainda curtia a carraspana. Acordara, com o sol batendo no rosto, e não conseguira se orientar, andando sem direção, tropeçando aqui e ali. Gritava como um desesperado:

— Marin! Me cuda, Martin me cuda que eu tá perdito!

Auxiliado por outras pessoas Martins levou o pau d’água para o seu estabelecimento onde recolheu a caixa, as escovas, as latas de graxa, o pano de lustrar.

Alguns anos depois dessa barulhada, a festa foi perdendo a animação. Continuaram rezando a novena, mas a parte externa perdeu o brilho. Nunca mais teve esplendor a festa dos Martírios, ainda hoje lembrada com saudade…

* Publicado no Boletim da Comissão Catarinense de Folclore nº 22, de janeiro de 1956.

3 Comments on A Festa dos Martírios

  1. BILLY MAGNO // 6 de abril de 2020 em 20:06 //

    Sensacional! Já tinha lido algumas histórias desse texto em outros.

  2. André Soares // 11 de abril de 2020 em 05:42 //

    É uma pena que as “Festas de Largo”, acabaram.
    Parabéns pelo resgate de mais um capítulo da história alagoana.

  3. Claudio Ricardo Teixeira Costa // 30 de março de 2024 em 14:14 //

    Intrigado. Pouco sei sobre o meu avô paterno, chamado de Martírio Levino Costa. Mas disseram que tinha várias profissões. Meu pai, Celso Costa, falecido, era de Pilar. Martírio devia ser um nome comum no local e na época.

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