Raul Dias Cardoso e a conspiração integralista em Alagoas

Enterro de integralista no interior de Alagoas

Gustavo Maia Gomes*

Durante uma fase de sua vida, Raul Dias Cardoso (1894-1979, irmão de minha avó materna, Olga) teve atividade política intensa. Integralista, foi preso, pelo menos, uma vez e, em outra ocasião, teve de prestar depoimento à polícia, ficando detido.

Em julho de 1942, quando os navios brasileiros já haviam sido afundados pelos alemães, mas o nosso país ainda não tinha declarado guerra às potências do Eixo, Raul retratou-se, em depoimento à polícia, de suas preferências antigas, afirmando não ter mais convicções integralistas e avaliando que a eventual vitória da Alemanha-Itália-Japão no conflito mundial seria uma calamidade.

Raul Dias Cardoso e Maria Augusta Pires Ferreira (Cinola), provavelmente, em sua casa do Poço, em Maceió, AL no dia 12 de março de 1973

Surgido em 1932 e chefiado por Plínio Salgado (1895-1975), o Integralismo foi o primeiro movimento político de massas do Brasil. “Organizou excepcional rede de imprensa e, com sua militância atuante, conseguiu fundar núcleos por várias partes do país, configurando-se como o primeiro partido político brasileiro com implantação nacional e reunindo cerca de meio milhão de aderentes”.

A difusão pelo país alcançou Alagoas, onde vários núcleos do movimento foram criados e mantidos, na capital e no interior. Raul Dias Cardoso comandava um deles (ou mais de um?), na região de Atalaia, Cajueiro e Capela.[1]

Em novembro de 1937, com o golpe do Estado Novo, o Integralismo foi proscrito. Até que isso acontecesse, entretanto, a situação parecia ser inteiramente outra, a ponto de Getúlio Vargas ter prometido ao chefe integralista que o seu movimento seria acolhido na nova ordem, já então sendo preparada, podendo Plínio Salgado, até mesmo, indicar o futuro ministro da Educação.

Tratava-se, porém, de uma manobra diversionista: Getúlio, simplesmente, ganhava tempo, de modo a tomar a iniciativa contra os camisas-verdes apenas quando estivesse seguro de que conseguiria esmagá-los.

Talvez essa dubiedade existente no Rio de Janeiro, tenha-se espraiado pelas unidades da federação, pois, em 1936 – antes, portanto, do Estado Novo –, houve perseguições aos integralistas desencadeadas por governadores (ou interventores) como os do Paraná (julho) e de Alagoas (outubro). Foi depois do segundo desses episódios que os títulos e subtítulos abaixo apareceram no Diário de Pernambuco.

Alagoas: Como se processou o fechamento das sedes integralistas

Nota Oficial da Polícia

Medidas tomadas pelo comandante do 20º B. C.[2]

Fascismo tropical

Estaria em marcha uma conspiração integralista para tomar o poder no Brasil? O governo de Alagoas acreditou que sim. Raul Dias Cardoso, que, então, morava em Capela (AL), foi preso, acusado de ser um dos líderes do movimento naquele município.

O integralismo foi a versão brasileira do fascismo italiano, com a importante diferença de que, entre nós, os camisas-verdes jamais chegaram ao poder. Mas, não se tratou, apenas, de uma organização composta por gente simplista ou por fanáticos da extrema direita. Longe disso. Quantidades apreciáveis de políticos, líderes religiosos e pensadores sociais que começaram a vida pública no movimento liderado por Plínio Salgado se tornaram, depois, figuras respeitadas pela esquerda, como San Thiago Dantas (1911-64), ministro das Relações Exteriores e da Fazenda de João Goulart; Dom Helder Câmara (1909-99), arcebispo católico opositor da ditadura militar (1964-85); e Roland Corbisier (1914-2005), filósofo, deputado, e fundador do célebre ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), foco do pensamento nacionalista antes de 1964.

No sentido oposto do espectro político, vários antigos integralistas permaneceram fieis à orientação conservadora e se destacaram durante o regime militar, como Miguel Reale (1910-2006) jurista, escritor; Alfredo Buzaid (1914-91), Ministro da Justiça (1969-74); e Raimundo Padilha (1899-1988), governador do Rio de Janeiro (1971-75).

Havia, enfim, aqueles que eram ou se tornaram intelectuais respeitados, independentemente de sua opção política posterior aos tempos integralistas. Estes incluem o próprio fundador do movimento, Plínio Salgado, político, escritor, jornalista e teólogo; Gustavo Barroso (1888-1959), advogado, professor, museólogo; Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), historiador e antropólogo; Augusto Frederico Schmidt (1906-65), poeta da segunda geração do modernismo, diplomata e editor; Vinícius de Morais (1906-65), diplomata, poeta e compositor musical; Álvaro Lins (1912-70), advogado, jornalista, professor, crítico literário e membro da Academia Brasileira de Letras.

Em Alagoas, três figuras importantes na história do Integralismo foram Mário Marroquim (1896-1975), filólogo, jornalista, advogado, músico e professor; Afrânio Lages (1911-90), político que chegou a governador do Estado (1971-75); e José Lins do Rego (1901-1957), um dos principais escritores do chamado romance regionalista dos anos 1940, que não era alagoano, mas morou naquele Estado durante alguns anos. Na sua esfera de atuação, mais local, Raul Dias Cardoso esteve envolvido nos acontecimentos de Atalaia e da Usina Uruba, em 1936.[3]

A conspiração alagoana

Retomo a história da alegada conspiração integralista em Alagoas, desarticulada no mês de outubro de 1936. Dizia o Diário de Pernambuco, difundindo informação vinda de Maceió: “Ontem à tarde, corria insistentemente [a notícia de] que o governo do Estado mandara fechar todos os núcleos integralistas do território alagoano”. Era verdade: a polícia havia apreendido “documentos comprometedores das intenções subversivas dos adeptos do Sigma [símbolo do integralismo]”. Fora dada a ordem, em seguida, de uma busca na sede do movimento, “a fim de deter o arquivo da Chefia Provincial”. A busca, entretanto, fracassou:

Preso o chefe do gabinete provincial [do movimento integralista em Alagoas], declarou este que o arquivo havia sido retirado na véspera pelos Srs. Mário Marroquim e Fernando Oiticica, ignorando o motivo que havia levado seus companheiros a isso.[4]

“Comparecendo, depois, à chefatura da Polícia, o Sr. Mário Marroquim negou a veracidade das declarações de seu companheiro”. Paradoxalmente, prossegue o relato, “esse fato veio positivar ainda mais as intenções dos camisas-verdes”. Como providência seguinte, imediata, “foi preso o tenente Oliviél Pedrosa [Antonio Oliviél de A. Pedrosa], chefe municipal integralista de Atalaia, tendo a polícia, em cerco efetuado na Usina Uruba, prendido o camisa-verde Raul [Dias] Cardoso”. Bem, a Usina Uruba pertencia ao meu avô Manoel Sebastião de Araújo Pedrosa (falecido naquele mesmo ano), cunhado de Raul. Este havia sido atraído para Alagoas após a compra da Usina por Manoel Sebastião. Tal era a razão pela qual o chefe integralista municipal, nascido em Santa Rita, PB, agora residia em Capela, cidade vizinha a Atalaia. Na região, ele fazia política conspiratória, como era a regra naqueles tempos.[5]

Após o fechamento da sede provincial aqui [Atalaia], o que se deu de maneira rápida e enérgica, foram retiradas as tabuletas da fachada contendo os nomes da “Ação Integralista Brasileira” [AIB] e do vespertino A Província.[6]

A polícia forneceu à imprensa cópias dos documentos que, apreendidos, haviam motivado a ação repressiva. Um deles, remetido pela AIB [Aliança Integralista Brasileira] / Núcleo Municipal de Atalaia e dirigido ao “companheiro” Raul Dias Cardoso – Usina Uruba, dizia:

Com o início do plano do chefe Celestino, está demonstrada a nossa vitória. Em Sergipe, a força pública está conosco. [Na] Bahia, apesar das escaramuças do governo do Estado, tudo parece [nos mostrar que haverá] campo franco para a nossa almejada Revolução.
Não demonstre muito interesse aos companheiros. Aguarde notícias. Ontem, recebi uma carta de um companheiro de Sergipe, (…) na qual me expõe com clareza o modo pelo qual deve ser iniciado o levante nos “Núcleos Municipais”. Como já sabes, não desanimo e estou disposto ao sacrifício, a fim de não perdermos a oportunidade.
Brevemente, lhe tratarei assunto de máxima importância e que só com a vista, pois trata-se (sic) de alto interesse na causa.
Anauê. Pelo bem do Brasil!
Antonio Oliviél de A. Pedrosa[7]

Acrescento um esclarecimento e uma pergunta: (i) “Anauê” era a versão tropical do Heil Hitler, a saudação nazista (embora a identificação de Plínio Salgado fosse muito mais com Mussolini do que com o ditador alemão); (ii) O signatário da carta secreta era “Antonio Oliviél de A. Pedrosa”. “A. Pedrosa” significaria “Araújo Pedrosa”? Não consegui elucidar este ponto, mas aquele “A. Pedrosa”, em Atalaia, em 1936, amigo de Raul Dias Cardoso, bem que podia ser parente de Manoel Sebastião de Araújo Pedrosa, meu avô, proprietário da Usina Uruba.

O segundo documento apreendido pela Polícia alagoana dizia, entre outras coisas:

Ao companheiro Salustiano Eusébio. Chefe do Gabinete Provincial.
De acordo com as novas instruções, acabo de informar ao companheiro Raul Dias Cardoso, em Uruba, que deve reunir o maior número possível de companheiros, a fim de seguirem a orientação do capitão Aguinaldo Celestino, chefe provincial de Sergipe, ora em missão da Chefia Nacional em Alagoas, a fim de entrar nessa cidade para de qualquer forma levar a efeito o plano.[8]

Provas do crime

A Polícia apresentou essas cartas como provas de que uma insurreição estava em vias de ser deflagrada. (Lembremos que, apenas um ano antes, em 1935, os comunistas de Luís Carlos Prestes haviam tentado tomar o poder no Brasil, por meio de uma rebelião militar que, dominada, suscitou violenta reação do governo Vargas.) O secretário Mendonça Braga foi drástico na repressão: além de fechar todas as sedes da AIB, proibiu “em todo o território alagoano o uso da camisa verde ou de qualquer outro distintivo integralista”. Aquele que tentasse desobedecer seria “punido severamente”. Não sei se disso tudo resultou, além da prisão, alguma consequência negativa mais permanente para Raul Dias Cardoso.

A Associação Integralista Brasileira, assim como todos os outros partidos políticos, foi extinta pelo presidente Getúlio Vargas, imediatamente após a instauração do Estado Novo, em 10 de novembro de 1937. Mas, os seguidores de Plínio Salgado não seriam facilmente esquecidos.

Quando, em fevereiro de 1942, navios brasileiros foram torpedeados pela Alemanha, um clima de caça às bruxas se instalou no país. Havia o risco de que estrangeiros aqui residindo, ou mesmo brasileiros, servissem como espiões das potências do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). Seria o “quinta-colunismo”, a sabotagem perpetrada por gente colocada em posições estratégicas para passar informações ao inimigo. (Embora, ainda não, oficial: o Brasil só declararia guerra à Alemanha e Itália em agosto daquele mesmo ano.) Raul Dias Cardoso, na sua condição de simpatizante do regime italiano, estaria, fatalmente, entre os suspeitos.

Eis o que publicou, em 4 de julho de 1942, o jornal do Rio de Janeiro A Noite:

Campanha contra o quinta-colunismo em Alagoas: (Maceió). Prosseguindo na repressão ao “quinta-colunismo”, o secretário do Interior ouviu na Penitenciária o bacharel Mário Marroquim e os senhores Raul Dias Cardoso e Artur Góes, antigos chefes integralistas. (…)
Raul declarou que considerava o Estado Novo [a ditadura aberta instaurada por Getúlio Vargas em 1937] uma conquista idêntica à da Independência do Brasil em 1822 e que considerava absurda a possibilidade de vitória por parte dos países do Eixo que, a seu ver, seria uma verdadeira calamidade um triunfo teuto-ítalo-nipônico. Acrescentou não ter mais ilusões nem ideias integralistas, nem tampouco manter relações com seus antigos companheiros.[9]

Assim terminou, tanto quanto eu sei, a carreira política de Raul Dias Cardoso.

[1] O trecho entre aspas é de Rogério Lustosa Victor. “Getúlio Vargas e o Integralismo: histórias de pescador”, Revista Angelus Novus – nº3 – maio de 2012,  disponível em http://www.usp.br/ran/ojs/index.php/angelusnovus/article/view/129/pdf_29 (acesso em 22/7/2016). Lustosa Victor, por sua vez, , cita Hélgio Trindade. Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 1930. São Paulo: Difel, 1974, p.10.
[2] Diário de Pernambuco, 6/10/1936, pág. 5.
[3] Afrânio Salgado Lages era filho do coronel José Lages (que aparece noutro capítulo do livro em preparo, quando trato das vicissitudes da Usina Campo Verde, dos Maia Gomes) e tio de Abenair Maia Gomes Lages, marido de Vânia Bahia Maia Gomes e pai de André Maia Gomes Lages, todos eles, não apenas primos, mas grandes amigos do autor.
[4] Todas as citações desta seção foram retiradas de “Alagoas”, Diário de Pernambuco, 6/10/1936, pág. 6.
[5] Apesar de ter sido preso em Atalaia, município-sede da Usina Uruba, Raul Dias Cardoso, provavelmente, residia em Capela. Ali exercia atividades de cultivador e exportador de fumo, conforme registrado pelo Almanak Lemmert de 1935 (e de 1936.)
[6] Todas as citações desta seção foram retiradas de “Alagoas”, Diário de Pernambuco, 6/10/1936, pág. 6.
[7] Todas as citações desta seção foram retiradas de “Alagoas”, Diário de Pernambuco, 6/10/1936, pág. 6.
[8] Todas as citações desta seção foram retiradas de “Alagoas”, Diário de Pernambuco, 6/10/1936, pág. 6.
[9] A Noite (RJ), 4/7/1942, pág. 4.

Publicado originalmente em http://gustavomaiagomes.blogspot.com.br/2016/09/raul-dias-cardoso-e-conspiracao.html

* Gustavo Maia Gomes. Ph. D em economia (University of Illinois, USA, 1985); Visiting Scholar (Cambridge University, England, 1987/88); Mestre em economia (Universidade de São Paulo, 1976); Diretor do Ipea (Brasília, 1995/2003); Diretor Geral da Esaf (Brasília, 2006); Professor da Universidade Federal de Pernambuco (1976/2009); Secretário de Planejamento, Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente de Pernambuco (1991); autor de livros e artigos; economista e escritor. Casado com Lourdes Barbosa. Pai de Marília, Claudia, Pedro, Daniel e Gabriela.

1 Comentário on Raul Dias Cardoso e a conspiração integralista em Alagoas

  1. Felicio Albuquerque // 1 de outubro de 2016 em 06:55 //

    Excelente artigo Gustavo, sugiro a quem se interessa sobre o tema, assistir “Menino 23” em cartaz esta semana no Cine Arte Pajuçara.

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