Primeiros cantos e autos da natividade no Brasil

Théo Brandão explica a origem do Pastoril, uma das mais ricas manifestações do folclore nordestino

5º Festival dos Pastoris em 1966 no auditório do Sesi Cambona em Maceió. Foto acervo Luiz de Barros

Manoel Malta e Haroldo Miranda em Recife com um Pastoril

Théo Brandão*

Foi no próprio século da Descoberta que se iniciaram no Brasil os cantos e autos da Natividade.

Pensava-se até há pouco que haviam sido os jesuítas os introdutores do teatro no Brasil. O Padre Serafim Leite, contudo, nos revelou em sua História da Companhia de Jesus (pág. 607) “que os portugueses já apresentavam autos no Brasil quando os jesuítas começaram os seus, autos representados nas igrejas, à moda portuguesa e arranjados ali mesmo”. Todavia, a verdade é que os padres da Companhia “deram à arte dramática da colônia nascente o primeiro desenvolvimento e arrancos”. (Serafim Leite, obr. cit).

Serviram-se assim os inacianos, na sua obra de catequese, dessas invenções muito próprias “não só para a diversão dos colonos em terra larga e grossa” como disse o Padre Nóbrega, “largados de Deus e do mundo”, no dizer do Padre Vieira, como para substitutivo das festas de bebedice e canibalismo, do gosto dos selvagens (A. Peixoto — Primeiras Letras).

O venerável Padre Joseph de Anchieta seria sem dúvida o principal deles visto ter nos deixado manuscrito de um drama sacro — Jesus — representado na festa de São Lourenço e uma de autor de vários outros, conforme noticia seu primeiro biógrafo, o Padre Pedro Rodrigues: “Entre outros fez uma obra que se representou em diversas partes, com grande aplauso e a primeira vez que se representou foi em S. Vicente, mostrou Deus com uma evidente maravilha como lhe comentava. E foi desta maneira, desejando o Padre Provincial Manuel da Nóbrega evitar alguns abusos que com autos pouco decentes se faziam nas Igrejas, encomendou ao irmão José que fizesse uma obra devota, para se apresentar na véspera da Circuncisão” (A. Peixoto – Op. Cit.). Seria o auto da Pregação Universal (1567-1570) considerado por alguns como a primeira peça de teatro escrita no Brasil.

Pastoril dos anos 60 em Maceió

Pastoril dos anos 60 em Maceió

Daí porque aos jesuítas se deve e possa certamente ligar o aparecimento dos primitivos cantos e representações da Natividade no Brasil.

Através da Cartas Avulsas (notas de A. Peixoto, apud Serafim Leite), sabe-se da existência nos primeiros tempos da colônia da representação de duas éclogas pastoris. Ambas em Pernambuco, uma em 1574, no princípio do ano (2 de fevereiro?) que “se fez com muita graça de que fizeram todos satisfeitos”; outra, em 1576, no recebimento do bispo D. Antônio Barreiros, chegado em maio, quando houve, depois do discurso, “uma écloga pastoril acomodada à terra”.

Também Fernão Cardim refere em sua Narrativa Epistolar, diálogos e cantigas pastoris. Primeiro a 2 de julho de 1583, na Aldeia do Espírito Santo (Abrantes), por ocasião da primeira visita de Provincial Padre Cristóvão de Gouveia. “Chegando o padre à terra começaram os frautistas a tocar suas frautas com muita festa, o que também fizeram em quanto jantamos debaixo de um arvoredo de aroeiras mui altas. Os meninos índios, escondidos enquanto comemos, que causavam devoção no meio daqueles matos, principalmente uma pastoril feita de novo para recebimento do padre visitador, seu novo pastor. Chegamos à aldeia à tarde; antes dela um bom quarto de légua, começaram as festas que os índios tinham aparelhadas as quais fizeram em uma rua de altíssimos e frescos arvoredos, dos quais saíam uns cantando e tangendo a seu modo, outros em ciladas saíam com grande grita e urros, que nos atroavam e faziam estremecer. Os curumis se meninos, com muitos molhos de frechas levantadas para cima, faziam seu motim de guerra e davam uma grita, e pintados de várias cores, nuzinhos, vinham com as mãos levantadas receber a benção do padre, dizendo em português: louvado seja Jesus Cristo. Outros saíram com uma dança d’escudos à portuguesa, fazendo muitos trocados e dançando ao som da viola, pandeiro e tamboril e frauta, e juntamente representavam um breve diálogo, cantando algumas cantigas pastoris. Nem faltou um Anhangá, o Diabo, que saiu do mato; este era o índio Ambrósio Pires que a Lisboa foi com o Padre Rodrigo de Freitas”.

Pastoril no auditório da Rádio Difusora em 1963

Embora já aí tivesse aparecido um diabo — figura importante nos futuros autos Pastoris — não é provável que estas cantigas pastoris, como as éclogas de Pernambuco, fossem cantigas e danças pastoris do Natal, mesmo porque não foram realizadas na época própria.

É mais fácil que tenha sido um pastorial do Natal o diálogo pastorial que se realizou em janeiro do ano seguinte (4-1-1584) na mesma aldeia: “Junto da Aldeia de Espírito Santo nos esperavam os padres que dela têm cuidado, debaixo de uma fresca ramada, que tinha uma fonte portátil, que por fazer calma, além de boa graça, refrescava o lugar. Debaixo de ramada se representou pelos índios um diálogo pastoril, em língua brasílica, portuguesa e castelhana e têm muita graça em falar línguas peregrinas, máxime a castelhana. Houve boa música de vozes, frautas e danças” (Cardim – ob. cit.).

Não somente se estava na época do Natal, mas dias antes, refere ainda Cardim “tivemos pelo Natal um devoto presépio na povoação, aonde algumas vezes nos ajuntávamos com boa e devota música, e o irmão Barnabé Tello nos alegrava com seu berimbau”.

Todavia se estas éclogas, autos e diálogos pastoris ainda não eram autos, danças e cânticos da Natividade, decerto já o seriam aquelas outras de que nos fala o Padre Serafim Leite: “Também pelo Natal, na casa dos padres, se armaram presépios e lapinhas e diante delas diziam ingenuamente os irmãos e meninos suas composições escolares e cantos singelos — mil indústrias como se vê sabiamente arquitetadas pelos jesuítas, para tornarem mais levadeira a cruz seca do Brasil, como se exprime Vasques”. (ob. cit.).

Apresentação de Pastoril no auditório da Rádio Difusora nos anos 60

Daí por diante deve ter-se espalhado a devoção dos presépios e pastoris pela terra de Santa Cruz, tanto mais quanto nessa mesma década tomava hábito no convento de São Francisco de Olinda, Frei Gaspar de Santo Antônio que, no dizer de Jaboatão: “foi devotíssimo do mistério inefável do Nascimento de Cristo, fazendo naqueles dias, além de suas particulares devoções, algum do Deus Menino em Belém, para mover aos religiosos o maior afeto a esse mistério; e ali lhe dizia alguns louvores e fazia suas devotas representações, ainda depois de muito velho, pois naquele convento faleceu em 1635, na idade de 93 anos”. É indubitável que estes passos e representações eram cantos e representações da Natividade, isto é, o embrião dos pastoris atuais.

Outro amante de presépios e pastoris foi, no século seguinte, o religioso Frei Bernardo Santa Clara que professou em 1673 e faleceu em 1723, “foi em extremo devoto do terníssimo mistério de Cristo nascido e era suma a alegria que o ocupava naqueles dias de sua festividade, e cuidou por muitos anos, até os últimos dias de sua vida, do culto e do asseio do presépio que há neste convento de Olinda” (Pereira da Costa — Folclore Pernambucano).

Tanto quanto estes dois religiosos muitos outros deveriam exercitar o edificante mistério da Natividade mormente os da ordem de São Francisco que desde seu fundador se dedicaram ao culto dos presépios e ainda hoje se celebrizam na sua confecção.

Pastoril Senhor do Bomfim do Poço, Maceió, em 1967

Decerto é provável, como o diz Mario de Andrade (Origens do Pastoril) que se tenha perdido a maioria infinita dos pastoris escritos e executados durante o período colonial “pois a escassez de referências conhecidas prova que o pastorial durante esse tempo viveu de vida precária e desimportante”. Podendo, contudo, haver acontecido justamente o contrário: a escassez de referência não sendo senão falta de oportunidade de mencionarem nossos cronistas fatos tão corriqueiros como tais representações em sua época, podendo ter havido maiores notícias se eles tivessem sido coisa rara e exótica.

De qualquer modo, afora as notícias de Jaboatão, não sabemos da existência de pastoris nos dois séculos seguintes ao da descoberta.

Só em 1801 é que se aprende da existência (ou melhor, da persistência) deles, tão numerosa e intensa que chegava a ocasionar abusos, por intermédio da representação do bispo Azevedo Coutinho, dirigida ao Governo, reclamando contra a função das chamadas Pastorinhas, sobre que se providenciou, como consta do ofício que teve em resposta, expedido em 12 de dezembro, assegurando-se lhe que se ia empregar os meios necessários “para se extinguir de todo esse abuso à nossa santa religião” (Pereira da Costa, ob. cit.).

E depois, em 1840, quando ainda os abusos continuavam, então denunciados pelo “O Carapuceiro”, do Padre Lopes Gama, em Pernambuco: “Esta parece ser uma folgança endêmica do nosso Pernambuco. Em se aproximando o Natal, surgem de todas as partes os presépios, sendo a cidade de Olinda o lugar mais abundante deste gênero… Começam em a noite de Natal e repetem-se todas as noites até o dia de Reis, depois do qual entra por seu turno o ato de queimar as palhinhas de cada presépio, o que constitui nova folgança. As pastorinhas cantando diversas endeixas, dançam em cadência e repetem suas loas em honra e louvor de Jesus Cristo recém-nascido” (P. Costa — ob. cit.).

Esta primeira metade do século passado deveria ter sido a época áurea do Pastoril a julgar-se pela fundação no Recife de associação que representava Pastoris conforme nos dá conhecimento o mesmo Pereira da Costa, A Natalense instalada a 8 de março de 1840, cujas representações se realizavam no antigo colégio dos Jesuítas (hoje Igreja do Divino Espírito Santo), a Nova Pastoril, fundada no ano seguinte; e pela floração nesse Estado e, na mesma época, na Bahia, dos musicistas e libretistas de Presépios e Bailes Pastoris, como Modesto Francisco das Chagas, Canabarrro, Patrício José de Sousa, João da Veiga Murici, Santos Reis, Olímpio Deodato Pitanga, Padre Maximiliano Xavier de Santana, João Antônio de Queiroz, Eduardo Contreiras, Boaventura dos Santos Lima, etc.

*Publicado no Suplemento Literário do Diário de Notícias de 25 de dezembro de 1960.

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