O Brasil descobre o sururu alagoano em 1930

Texto publicado na Revista da Semana de 29 de março de 1930. A revista carioca apresentava o sururu alagoano ao Brasil

O Sururu foi publicado na Revista da Semana de 29 de março de 1930

O Sururu foi publicado na Revista da Semana de 29 de março de 1930

O Sururu

Por Affonso de Carvalho

O sururu é privilégio da terra dos canais e das lagoas. O viajante que um dia já teve a ventura de com ele travar relações digestivas, não quer outro prato, em chegando a Maceió, com algumas horas de fome concentrada da Bahia ou do Recife.

A capital alagoana, que já sabe dessa corrida ao sururu, prepara-se então, faceiramente, para satisfazer a gulodice de tão curiosos passageiros, oferecendo-lhes a indefectível fritada com opiparo acompanhamento de apetitosas carapebas, resignadamente achatadas no fundo das travessas, à espera do garfo terrível.

Ora o sururu, trazido com todas as perfeições culinárias á elegância da mesa, é, de fato, sedutor e só pode despertar no Lucullo mais exigente o prazer que dá a prática constante e ostensiva do 5º pecado mortal.

O forasteiro lambe os beiços de contente, gosta da novidade e repete. Vai-se toda a fritada . . .

Falamos do forasteiro, porque os do lugar já estão fartos do sururu…

Mas, afinal, que é o sururu? perguntará quem nunca o viu.

— É um pequeno molusco amarelado, do fundo dos canais e das lagoas.

Foto ilustrativa da matéria 1As duas pequenas conchinhas ovaladas, onde se esconde, apresentam uma cor preta, identificada a da lama, que lhe deu origem. Aspecto desagradável…

O sururu só deve ser visto depois de pronto…

Mas, assim mesmo feio e antipático, é o prato caracteristicamente estadual, com as mesmas honras que o Amazonas dá ás tartarugas, o Maranhão aos camarões e a Bahia ao vatapá…

O sururu é feio, mas é gostoso. Mas a compensação — convenhamos… — tratando-se de uma questão de paladar é esmagadora…

O sururu, porém, não vem à mesa com a facilidade que se imagina.

A sua pesca abrange um dos mais interessantes e bizarros capítulos da resistência, da tenacidade e da resignação alagoana.

Porque não é sé lutar com a água, como na pescaria comum.

É preciso lutar com a água e com a lama, que é mil vezes pior que a água, com todas as suas inconstâncias e as suas convulsões.

Capa da Revista da Semana

Capa da Revista da Semana

E, como se não bastasse tanto sacrifício, o sururu ainda se deixa ficar indolentemente lá no fundo das águas paludosas, de mistura com a lama.

O caboclo que vá buscá-lo. Ele vai. E muitas vezes junto com a lama traz o impaludismo…

Flechas de sol. Dos turíbulos prateados das lagoas, começa a subir o incenso da neblina. Os coqueiros principiam a agitar no céu brumoso os estandartes verdes das suas palmas. As baronesas principiam a tremer, prontas para a viagem, canais abaixo.

E a Levada acorda, num demorado espreguiçamento de proletária extenuada…

O caboclo salta, então, para as canoas. Os varejões fincam-se no fundo das águas.

As barcaças começam a agitar as suas grandes asas de lona.

Breve, nas duas Lagoas, no Afoga Frade, no Canal dos Caroços, no Canal do Trapiche, no Canal Grande, já estão deslizando as canoas esguias, velas ao vento.

É a hora da pesca. Uns à procura das “pitimboias“, previamente fincadas no fundo da lagoa; muitos entregues à pescaria comum; grande parte em demanda do sururu.

Uma canoa esgueira-se para um mangue. Aí o caboclo sentiu a presença do marisco. E — nu da cintura para cima e apenas com um pano á guisa de tanga —atira-se n’água. Quando a profundidade exige, mergulha.

A água abre um largo círculo de pequenas ondas…

E, passados uns instantes, o caboclo volta, trazendo uma pasta negra e lamacenta, escorrendo água.

É aí que se encontra o molusco, como o ouro se encontra na ganga impura…

A canoa vai se enchendo.

Não precisa muito tempo, porém, para o pescador, já bronzeado pelo sol, dar-se por contente.

E, satisfeito do resultado, a canoa levanta a vela e volta à Levada ou à pequena ilha de onde partiu, em cuja praia, cheia de coqueiros, ficará todo o dia estirada, como um quelônio, espairecendo ao sol…

E vem a segunda fase.

Lava-se o sururu em pequenos cestos. Depois, ei-lo pronto para tomar um destino culinário…

Mas, se a sorte lhe indicar uma casa pobre, onde a alimentação é a mais rudimentar possível — farinha, peixe, manga … — já se sabe que o prato é o sururu de capote, fervido com as próprias conchas e depois saboreado com pirão de farinha.

No dia seguinte, o mesmo cardápio… Secando ao sol, no cimento ou em arupembas, o sururu adquire melhor aspecto. Amarelo, de um amarelo vivo, parece até um pouco de ouro derramado…

Mas nem sempre é preciso a canoa afrontar o Calunga para ir buscá-lo. Ali, na própria margem da lagoa ou do canal, ele provoca a atenção do caboclo.

Ás vezes, nem precisa ir buscá-lo. Vão as crianças e, frequentemente, as mulheres.

É um ataque geral, que o sururu espera com a calma dos fatalizados.

Feio ou bonito, grande ou pequeno, claro ou escuro, é de qualquer maneira um dos característicos dos canais e das lagoas.

Há mesmo quem não compreenda Alagoas sem o sururu.

Não de admirar.

Poucos admitem a África sem o seu marfim ou a Ásia sem as suas pérolas…

2 Comments on O Brasil descobre o sururu alagoano em 1930

  1. David Bezerra // 9 de janeiro de 2016 em 01:01 //

    Parabéns Ticianeli, acompanho seu trabalho de garimpagem da história das Alagoas. Cearense de Fortaleza, que morou em Maceió nos anos 1980/1995. Abraços.

  2. magnifico esse contexto historico

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