Miss Paripueira, Mé-cum Água e outros estranhos amigos

Av. Moreira Lima no início dos anos 60, palco de muitas figuras populares de Maceió
José Maria Tenório Rocha

José Maria Tenório Rocha

José Maria Tenório Rocha*

MISS PARIPUEIRA é baixinha, morena, feia, e se traja com rotos vestidos de gala, peruca loura, barangandãs, mil enfeites, faixa de miss e coroa. Vive dizendo que vai casar com Salgado Filho (o ator Jonas Melo) e detesta quem a chame de “Canela de sabiá” e diga que a miss Barra de Santo Antônio é mais bonita do que ela.

Grita, solta mil palavrões e fala em todos os familiares do camarada ousado e gozador. Pelo comercio de Maceió, desfila e pede um dinheirinho para ajudar a miss.

DONA MARIA DA MÁQUINA, quebrangulense, era um fenômeno de calma e placidez, mas, quando em conversa perguntavam: — Dona Maria, que história é essa que falam sobre a máquina e o pé da máquina? — Dona Maria, de calma, transformava-se em um vulcão de impropérios, palavrões e jogo de pedras que fazia toda a criançada correr a toda.

MÉ-CUM-ÁGUA, também de Quebrangulo, era um tipo estranhíssimo. Sem que tivéssemos nenhuma explicação e alguém dizia: — Mé-Cum-Água! — Ele respondia: – Mistura pra ver em que dá, filho dessa, filha daquela, filho daquela outra e, corria atrás dos malfeitores para surrar.

NORA, simplesmente Nora, era bastante diferente dos três primeiros. Preta, de cabelo liso, tinha criado para si um mundo mágico só seu. Quieta. Falava ou balbuciava algo apenas quando perguntavam alguma coisa. Sua linguagem era cifrada, baixa, quase impossível de ser decifrada, decodificada.

Muito tímida, não ousava levantar as vistas para ninguém, nem nunca se soube que tivesse dito algo que agravasse a nenhum vivente.

DEOLINDA, igualmente preta, com mania de fazer festas ao mártir São Sebastião, mesmo fora de tempo dos festejos. Deolinda, depois de tomar uns tragos, pegava o bombo e saía tocando em frente de casa. As crianças se juntavam, e haja músicas e risos de todos. Depois de muito bater na zabumba, cansava, entrava em casa e ia preparar os afazeres domésticos.

AUGUSTO era um zarolho, trabalhador na agricultura, que se esmerava em vestir bem, a sua moda, e pedir moças em casamento.

Aos sábados, lá estava Augusto na feira a vender galinhas e perus gordos. Entre uma vendagem e outra, apregoava seus dotes de bom garfo.

Certa vez, fez uma aposta para comer uma jaca grande e uma dúzia de rapaduras. Deu início a brincadeira. Depois de tanto comer, começou a sair sangue da boca e o homem ficou aperreado, mas resistindo heroicamente, até que meu pai chegou e acabou a festança.

Outro atributo interessante de Augusto eram os plurais. Todas as palavras que articulasse, teria que ser no plural, para ser bem-falante e impressionar os ouvintes. Sendo meu pai chamado de Floro, ele sempre dizia: — Bons dias, seus Floris! Como vamos?

Todos admiravam, gostavam e gozavam com Augusto.

DOMINGUINHOS era um tipo estranhíssimo de Maceió. Magro, alto, vesgo, e sempre de terno escuro e gravata, pronto para “qualquer edição”. Sua atividade costumeira eram os enterros. Morreu alguém, lá estava o Dominguinhos. Participava de velório, acompanhava o féretro, sempre solícito, quieto e compenetrado.

Casas mortuárias, igrejas e cemitérios eram os locais onde estava o nosso herói, e os rituais fúnebres seus pontos prediletos.

BRIGITE, rival de Brigit Bardot, atriz francesa da década de sessenta, era o tipo de mulher-fatal, que usava vestidos escandalosos e possuía atitudes e gestos provocadores, comprometedores, como a própria La Bardot.

Carnavalesca por excelência, comparecia a todas as maratonas, como antigamente se chamavam as prévias carnavalescas nas praças maceioenses.

Na maratona, não se contentava em pular, dançar. Queria mesmo era ir para o palco onde estivesse a orquestra, de onde soltava beijinhos para a multidão.

Essas figuras são os chamados TIPOS POPULARES, e são tão conhecidos que toda a comunidade reconhece, goza com eles, ralha e sente um certo e determinado carinho por eles, carinho que as vezes se transforma em respeito e até em saudade, quando desaparecem do cenário; tanto é assim que alguns compositores de música popular, vez por outra, lembram desses personagens em suas músicas; assim é que Chico Buarque de Holanda, na “Ópera do Malandro” abre espaço para Geni, um travesti conhecido e detestado por toda a comunidade que quer, em sinal de desprezo jogar nele pedras e também objetos pouco cheirosos.

O nosso irreverente Roberto Becker, na composição “Saudade de Maceió”, nos faz lembrar de Dr. Freitas, Pinha e outros tipos. Luiz Bandeira, recordando a infância em Maceió, compôs “Laurentino”, relembrando um preto que fazia propagandas da “Loja Progresso” da Maceió da Belle Époque, cantando muito alto, para chamar a atenção dos transeuntes.

Miss Paripueira em foto de Celso Brandão

Miss Paripueira em foto de Celso Brandão

E DAÍ?

Qual seria a importância social e psicológica desses tipos exóticos, marcantes para as comunidades? Qual seria a ligação deles com o patrimônio folclórico? São esses tipos populares figuras folclóricas? — São perguntas feitas por pessoas que tencionam entender o campo do folclore em toda a sua extensão.

Pela singularidade de suas vidas, esses tipos causam admiração porque conseguem romper as barreiras de toda a “normalidade” imposta e vigente na sociedade, não aceitando os padrões comportamentais do mundo moderno; por isso, tentam viver num mundo singular, próprio, criado por eles e para eles, fazendo a todos os “normais” pensar em seus modos únicos de ser, estabelecendo comparações com suas vidas.

Comovem, pela capacidade de transmissão de alegria, carinho, amor, embora que em momentos de exasperação, possam atirar pedras em quem os insultem.

Normalmente esses tipos são integrantes de classes sociais menos favorecidas, que, por terem sofrido mil opressões, revoltaram-se, fazendo agressão incontrolável à sociedade “perfeita”, “normal”, “sã”, criando com isso válvulas de escape, ao mesmo tempo psicológicas e sociais.

Alguns pontos, comuns entre os diversos tipos, poderiam ser levados em consideração; vejamos:

Esses tipos aparecem em pequenas vilas, distritos, cidades e muito pouco em cidades de grande porte, pois a repressão social é menor, e, cada um é cada um, com suas individualidades, preferências. Difícil é o espaço social onde não existam tipos populares, como difícil é a família onde não exista um ou outro parente que não saia das regras estabelecidas pelo grupo familiar.

Todos têm uma frustração por não terem realizado alguma coisa importante para si, e estão a seu modo, perseguindo o objetivo. Geralmente a frustração é demonstrada através de simples palavras, como “pedra de toque” que têm poder revelador, e quando isso é divulgado, passa a ser motivo de achincalhamentos, gozações, chateações.

Desejam-se sobressair, ser conhecidos, aceitos pela comunidade, por isso tentam agredir com o uso de roupas e adereços bem diferente dos usuais, cantam ou dançam ou fazem gestos, para atrair a atenção dos passantes.

Defendem-se das gozações através de agressões físicas, usando para isso aquilo que está em seu poder, ou proferindo impropérios, palavrões, ou atacando os familiares dos agressores.

Vivem normalmente da caridade pública, pedindo a um e a outro alguns trocados, mas, quando sentem que estão oferecendo dinheiro ou comida a título de esmola, não aceitam a oferta.

Por pertencerem a classes sociais menos favorecidas, residem em pequenos casebres, barracos edificados em terrenos baldios, muitas vezes construídos e ornamentado por si próprio.

Seriam apenas loucos, de uma loucura mansa, como taxa a Psicologia, ou loucos somos nós, que levamos vida rotineira, com assinatura de ponto e sorrisos quase obrigatórios e apreços a quem muitas vezes não merece sequer um olhar, mesmo que de relance?

Pela condição social própria desses grupos, pela festa e alegria produzida onde passam pela constância de suas presenças nas comunidades, esses tipos se enquadram, ou fazem parte do patrimônio folclórico de cada pequena parte deste Brasil grande e variado, terra do café, terra do Pelé e terra do carnaval, onde esses tipos estão a dizer: presente!

*Parte de texto publicado originalmente na Revista do CHLA, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal de Alagoas, Ano II, Nº 3, dezembro de 1986, Maceió.

1 Comentário on Miss Paripueira, Mé-cum Água e outros estranhos amigos

  1. Muito legal! Conheci vários personagens por você relembrados. Conheci você José Maria. Seu pai era barbeiro sr. Floro. Sua mãe dona Maria um dona de casa muito cuidadosa. Eu ficava olhando sua casa bem limpa e arrumada. Às vezes eu ia “na venda” pra Dona Maria. Eu era vizinha de dona Dondon. Passei minha infância em Quebrangulo. Por ser muito curiosa, eu ficava querendo saber sobre o comentário sobre Deolinda “correr bicho”. Então, tomei a decisão de comprovar. Fui pescar com ela no Rio Paraiba, à noite. Mas, pra minha decepção não vi nada. Kkkkkkk mas, não desisti. Passei a ser amiga dela. E ganhei o papel de “colaboradora” da festa de São Sebastião. Eu carregava o quadro com a foto do Santo, acompanhando a bandi há de Pífanos. E à noite eu lá estava leiloando as “doações. Tinha de tudo, até pães, doados por dona” Toinha de seu José Magalhães. Minha infância era dura, por conta da pobreza. Mas Quebrangulo foi palco de muitas fantasias do meu mundo cor de rosa. Ah! Eu era fã de “seu Zome” o grande foguete iro. Beijos

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