Funerais em Maceió no tempo do bonde

Bonde de Jaraguá sobre a Ponte dos Fonsecas, na Praça Sinimbu

Bonde de Jaraguá na Rua Sá e Albuquerque, anos 20

Floriano Ivo Júnior

Até 1930 os automóveis particulares e de aluguel eram poucos em Maceió e como não havia carros fúnebres os enterros se faziam a bonde, havendo um bonde especialmente para o transporte dos féretros aos Cemitérios de Nossa Senhora da Piedade ou Cemitério Velho, e de São José ou Cemitério Novo, também chamado de Caju, construído no governo Fernandes Lima, para abertura de novas sepulturas na epidemia da febre espanhola, que vitimou sua própria filha, ali enterrada.

No sepultamento de pessoas importantes, de famílias ricas, empresários de renome, políticos e autoridades, encomendava-se bonde especial, que fazia fila em frente e nas proximidades da casa do morto, com tabuleta “Campo Santo”, à espera da saída do cortejo fúnebre. Ficava à disposição dos parentes, amigos, companheiros de trabalho, pessoas conhecidas e até mesmo estranhos, que no tempo de muita religiosidade e respeito atendiam aos convites publicados nos jornais, com agradecimentos antecipados de “por este ato de piedade cristã”, cumprindo o preceito bíblico de visitar os enfermos e enterrar os mortos.

A saída dos enterros era procedida em combinação com os horários das linhas regulares, a fim de não prejudicar a circulação dos bondes nos diversos bairros da cidade, evitando atrasos e aborrecimentos aos passageiros. Contudo, havia sempre interrupções, curtas ou prolongadas, pois sem linhas duplas no percurso dos cemitérios, embora existissem alguns desvios, inclusive um no trecho frontal do Cemitério de Nossa Senhora da Piedade, o mais tradicional, muitas vezes os bondes especiais eram tantos que desfalcavam as outras linhas, fazendo valer os privilégios dos sepultamentos ricos e de mortos ilustres.

Bonde da Zona Sul de Maceió na Rua do Livramento, anos 50

O bonde fúnebre era diferente dos outros, todo pintado de preto, sem bancos, com cortinas de crepe e uma essa [catafalco] forrada de veludo ao centro para o esquife, reservado o restante do espaço para acomodação em círculo da família do finado, que viajava de pé, em sinal de contrição, a longa fila de bondes se deslocando devagar, de luzes acesas mesmo durante o dia, seguindo o acompanhamento do bonde fúnebre em demanda do cemitério.

Era de fato uma cena lúgubre, de consternação, pelo respeito que na época se tributava aos mortos. Só homens, de preferência usando roupas escuras, compareciam aos enterros, porque as mulheres ficavam em casa nos prantos prolongados, crises nervosas e desmaios, socorridas mães e filhos pelos parentes próximos e amigas íntimas, ocasiões em que não faltavam carpideiras famosas nestas manifestações de pesar, sendo infalíveis nos enterros de gente rica como atoras exímias na consolação de viúvas e órfãos.

As mulheres e crianças não acompanhavam os enterros e só frequentavam os cemitérios depois das missas de 7º e 30º dias do falecimento do ente querido. As viúvas, filhas, filhos, parentes próximos e pessoas mais chegadas, os da família de luto fechado, levavam braçadas de flores naturais para o preito de saudades no túmulo do morto e a renovação do conforto moral. As crianças não podiam ver o bonde fúnebre, nem a saída dos enterros para não se impressionar à noite e ter sonos de pesadelos.

Naquela época não havia missa de corpo presente, mas se a morte não era repentina e o doente pressentia a chegada de sua hora pedia o confessor para morrer em paz com sua consciência, recebia extrema unção, comungava em casa, havendo encomendação do corpo após o óbito e bênção da sepultura por ocasião do sepultamento, atos oficiados pelo padre amigo da família ou pároco da freguesia.

Bonde na Rua do Comércio nos anos de 1940

Só os dignitários da Igreja tinham direito a missa de corpo presente, oficiada na Catedral, presentes o clero e as irmandades religiosas, as autoridades e os fiéis, sepultando-se após a “réquiem” sob a nave do templo, fechando-se a sepultura com laje de mármore para sempre, inscrito o nome do prelado em letras góticas.

Como ainda não se conhecia o ataúde de cedro, as três casas funerárias da época, duas no centro e uma em Jaraguá, confeccionavam os caixões sob encomenda, comparecendo o papa-defuntos à casa do morto para tomada das medidas, concessão só feita aos ricos e remediados, cujos funerais eram rendosos para as funerárias, que se encarregavam ainda de dar banho no morto quando homem, porque com as mulheres só gente da família disso se encarregava.

Depois de vestido no traje da viagem final, também usando a opa da irmandade, hábito de frade ou freira se por desejo manifestado em vida, o morto era colocado no caixão e trazido para a sala de visitas, cujas janelas eram abertas e colocadas as cortinas de cores pretas, brancas ou azuis, conforme a idade e estado civil do morto, sinalizando que naquela rua alguém havia falecido e passava a dominar o ambiente como personagem principal, impassível no seu estojo funerário colocado na essa [catafalco] sobre o tapete, o grande crucifixo de coluna à cabeceira e os pesados castiçais de tripé rodeando o esquife, o cheiro abusivo do espermacete das velas queimando, o silêncio só quebrado pelo balbucio das orações e belos soluços das mulheres.

Bonde na Rua do Comércio nos anos 50

Os caixões eram cobertos de veludo preto e forrados de cetim branco quando os mortos eram senhores, rapazes e senhoras casadas, roxo para as viúvas, azul claro para as solteironas, branco para as donzelas jovens, os adolescentes e anjinhos. Os caixões mais caros tinham franjas e cruzes em alto relevo todas em preto ou material dourado para os ricos, de preços menores com adornos prateados para os remediados, enquanto para os pobres os caixões eram cobertos de brim, forrados de algodãozinho e tinham pouco adorno.

Os indigentes eram sepultados em caixões desprovidos de qualquer adorno, fornecidos pela prefeitura, sociedades pias ou de mútuos, as irmandades de São Francisco, São Benedito e Nossa Senhora da Boa Morte, não se cobrando nas guias de enterramento o selo da caridade, que era o tributo municipal de manutenção dos cemitérios. (Observação do Autor: hoje quase já não se faz mais caixões cobertos de pano, embora a diferença econômico-social persista. Agora os ataúdes são de madeira nobre, de verniz fino de piano para os ricos e confeccionados em madeira ruim, de verniz de armário de cozinha para os pobres).

Os pobres como não podiam contratar bonde fúnebre nem bondes especiais, faziam os enterros a pé, em longas caminhadas para os Cemitérios de São José, no Trapiche da Barra, e Nossa Senhora Mãe do Povo, em Jaraguá, com revezamento dos acompanhantes na condução do caixão quando se sentiam cansados. Nesses enterros a frequência dependia do maior ou menor conhecimento do morto. No sepultamento dos anjinhos e adolescentes permitia-se a presença de menores, meninos, mocinhas, colegiais e poucos adultos, não havendo aulas na escola ou grupo escolar do falecido para que todos, professores e alunos, pudessem comparecer ao cemitério. De comum o cortejo fúnebre feito a pé.

Até certo tempo, mesmo depois do desaparecimento dos bondes, quando o morto não podia ficar em casa, levavam-no para velório em determinadas igrejas, as que não eram sedes de paróquia, embora inicialmente o privilégio fosse apenas dos sócios das confrarias, cujos membros ornamentados com as opas ou hábitos nas cores dos respectivos santos (azul de Nossa Senhora, vermelho do Coração de Jesus, marrom de São Francisco, preto de São Bento, marrom-amarelo das Carmelitas, brancos das Filhas de Maria e da Congregação Mariana), encarregavam-se de velar e conduzir o morto ao cemitério. Como alguns padres passassem a franquear as igrejas indistintamente, cobrando um óbolo para as despesas da sacristia, permitindo os velórios a quem o pagasse, sem exigência de confrarias, houve uma espécie de generalização dessa tolerância, vindo a causar constrangimento aos fiéis nas missas, novenários, atos de casamentos e batizados, o contraste da tristeza de uns e o ardor religioso e a alegria de outros na oficiação da liturgia festiva.

Bonde na curva dos Martírios, em frente ao prédio da Intendência Municipal nos anos 50

O vigário-geral, de ordem do arcebispo, proibiu o velório nas igrejas, porque ocasiões havia em que os caixões de defuntos formavam filas duplas de até seis velórios, provocando verdadeira balbúrdia nos cantos dos hinos sagrados, o vozerio dos terços puxados pelas carpideiras e o pranto dos familiares à hora de saída dos enterros aumentavam os protestos e recrudesciam os aborrecimentos, influindo na queda de frequência das missas. Muitas pessoas supersticiosas, chegando à igreja e deparando-se com defuntos enfileirados como uma patrulha macabra, voltavam para casa ou procuravam outros templos para suas orações.

Diante dessa situação constrangedora os velórios passaram a ser feitos exclusivamente nas capelas dos cemitérios, embora no meio mais pobre e rústico da população os enterros ainda saiam de casa, precedidos da noite de sentinela, no terreiro e no quintal, onde não faltam os serões prolongados a céu aberto até o amanhecer, com os copos de cachaça correndo de mão-em-mão.

Do livro “Crônicas e Depoimentos”, de Floriano Ivo Júnior, Recife, 1992. Título original: Maceió no tempo do bonde II.

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