Fazendo graça, fazendo história

A sátira políatica na década de 30 em Alagoas

Rua do Comércio, Centro de Maceió, na década de 20
Professora e escritora Vera Romariz

Professora e escritora Vera Romariz

Vera Romariz* – UFAL

Entre o final da década de 20 e o início dos anos trinta, desenvolve-se em Alagoas a sátira política, veiculada por jornais como O Jornal de Alagoas, O Diário, ou por publicações específicas como O Bacurau. É uma produção significativa, se compararmos ao quase silêncio dos textos de humor nos grandes ou pequenos jornais da atualidade.

Muitos trabalhos foram publicados com pseudônimos (Jatyr), garantindo um anonimato que livrou seus autores de contratempos com o poder local ou nacional, deixando-lhes espaço maior de liberdade expressiva. Em setembro de 1930, Almeida Lins publica uma reflexão sobre o riso na Arte, comprovando a importância e o volume das publicações humorísticas, além da consciência de seu papel crítico.

Daí a realidade da arte ser agressiva, escandalosa, sensacional, como é inegavelmente a reação latente dos próprios vencidos, a reação, mesmo inconsciente, das massas. Arte que não dispensa, no conto e no romance, a gritaria infernal dos panfletos, as retaliações pessoais da imprensa e as caricaturas burlescas das charges… Arte que revela a falência divina dos nossos heróis, que mostra o apodrecimento dos nossos caracteres tranquilos.

Ao utilizarem a sátira como elemento básico de expressão, seus autores reiteravam um princípio de gênero: o conteúdo político, coletivo. Para Hodgart (1969), que empreendeu uma verdadeira história crítica do gênero, existe uma relação profunda entre o texto satírico e o poder político, havendo uma consciência clara de que a linguagem pode influir nas relações de poder. A ideia de que essas produções são menores e seus eleitores menos preparados, carece de argumentação consistente, pois autores e leitores de humor político têm que conhecer os referentes históricos que motivaram as produções em análise.

Jornal O Bacurau de agosto de 1925

Jornal O Bacurau de agosto de 1925

Já no século V, Aristófanes, na comédia Os Acarnienses, ridicularizava o belicismo de seu tempo e, no século XII, uma sátira em latim criticava, timidamente, questões políticas da época. Nesse tempo, os poderes político e divino confundiam-se, criando bloqueios graves para seus autores.

O significado original do termo associava a sátira a um gênero especial, de efeito moralizador, em que as falhas humanas eram expostas e ridicularizadas. A partir de Aristófanes, separam-se a comédia e a sátira, cabendo a esta última especificidades com o conteúdo básico de crítica coletiva sob linguagem agressiva. Na arte, a sátira tem lugar definido, expressando-se sob formas retóricas especiais e propondo prazer e jogo estéticos a autores e leitores.

Funda-se um significado atual, apresentado por Koestler, na ideia de que a produção humorística promove um processo de recriação e recepção envolvendo um choque mental de um contexto para outro. Códigos incompatíveis confrontam-se ocasionando o efeito de humor.

Os textos de humoristas alagoanos que apresentaremos constituem uma visão crítica de fatos políticos da época e uma proposição tímida de um olhar fantástico do mundo transformado(1). As formas mais utilizadas são as modificações de textos já conhecidos com consequentes comentários satíricos e narrações fantásticas ou fábulas(2).

Os aforismos ou pequenos poemas são utilizados em grande quantidade, neles aparecendo uma intenção contida nos antigos libelos ou nas cantigas medievais de escárnio e maldizer: a desestruturação de valores conhecidos. O poder da palavra como exorcizadora de falhas coletivas aparece nos textos esquimós, irlandeses, gregos e árabes, com uma função verbal mágica de transformação social. Em todos esses aspectos, evidencia-se que o patético é infringido, recusado, e o choque de códigos se instala. Por ligar-se ao fenômeno político, o tema satírico é mais efêmero, variando conforme as relações sócio-históricas estabelecidas.

O Bacurau era impresso em Jaraguá numa tipografia como a Americana

O Bacurau era impresso em Jaraguá numa tipografia como a Americana

Nesse dinamismo, no entanto, algo permanece sem grandes variâncias: o poder crítico atribuído à linguagem e uma dimensão de práxis, nela contida. A sociedade dos homens reprimidos, em seus anseios de expressão da condição insatisfatória, encontra na linguagem literária uma possibilidade de comunicação e reversão dos dados reprimidos. Para Arendt (1984), a dimensão política é, substancialmente, a da práxis e da fala que criam condições para a memória histórica.

Para Habermas (1984), a linguagem é um meio de domínio e de poder social ou um instrumento ideológico. Essa ênfase na instância da linguagem permite supor que a sátira política constitui intersecção dos níveis reflexivo e prático. A dimensão técnica (do fazer) referida por Arendt, encontra tímidas aplicações no contexto político alagoano; não devemos atribuir função muito exorcizante a nossos escritores da década citada. O dizer, o expressar contradições em periódicos já constituiu grande salto, uma vez que o poder político sempre utilizou o silenciamento de questões conflitivas como forma de negá-las ao todo social. Em alguns momentos, a simples abordagem política de determinados fatos constituiu a única opção de mostrá-los sem as lentes falaciosas dos grupos hegemônicos.

Já em 1925, o político Ezequias da Rocha dizia

Eu defino Maceió
Com seus esgotos profundos
Com a sua água encanada
Qual rio de peraus fundos
E sobre as águas vagando
Uma canoa furada.
(O Bacurau, N° 131, ano 5, agosto de 1925).

Judas Isgorogota no Bacurau

Judas Isgorogota no Bacurau

A imagem estereotipada da “canoa furada” revisa outras simbologias de fundo encomiástico que a produção acadêmica utilizou.

Se analisarmos a posição política de Ezequias da Rocha, não poderemos, evidentemente, classificá-lo como de um autor libertário ou anárquico; as produções da época mostram que um autor de textos acadêmicos podia escrever, simultaneamente, com linguagem e conteúdo mais críticos, conforme o lugar de onde se expressasse. A publicação o Bacurau autodefinia-se como Órgão ultra social, antipolítico e humorístico; na década de 30, constitui verdadeiro libelo anticomunista.

Comigo os comunistas perderam a parada: os usineiros já dividiram o que eu tinha.
(O Bacurau, ano X, N° 225, dez. 30).

Quando o Jornal do Brasil refere aclamação a Júlio Prestes, um anônimo faz referência ao lenço vermelho dos revolucionários.

Foi com essa presepada
de reisado
de chegança
Que se fez revolução

A política é sem igual
Pois até fora de tempo
É tempo de carnaval.
(O Jornal, Maceió, ano X, N° 226, dez. 30)

A crítica contida no humor pode apresentar-se com conteúdos antipopulares, como a referência pejorativa à tradição. Implícita, está a noção de que o poder político precisa de uni revestimento de seriedade para impor-se, sendo desqualificadas ações do tipo referido. A crítica à corrupção nos concursos públicos (velha chaga de nossas elites) aparece em um jornal de 1931, de autor anônimo.

Pagou depressa a inscrição
E para se ver aprovado
Não foi preciso nem mesmo
Arranjar um pistolão.

Isto é exame ou dinamite?
Responda a Revolução.
(O Jornal, Maceió, ano XI, N° 234, fev. 31)

Com Getúlio no Governo, vários textos criticam o Estado Novo ou fazem sua apologia. Verifica-se, ainda, sutil crítica em relação ao grupo que perdeu nas relações de poder.

Sou o Arlequim da tristeza
Meu poderio passou
O meu compadre Getúlio
As minhas asas cortou.
(A.G.C., Bacurau, ano XI, N° 234, fev. 31).

Poesia de Judas Isgorogota para O Bacurau

Poesia de Judas Isgorogota para O Bacurau

A influência estrangeira no processo de industrialização provoca o aparecimento de alguns textos, em que é captada a interação entre grupos hegemônicos como o poder judiciário e o capitalismo inglês.

Se estivesse certamente
o chapéu do magistrado
Poderia desta vez
Neste chá movimentado
Ser trocado, mas somente
pelo boné de um inglês.
(Jatyr, O Diário, Maceió, ano 1, N° 41, agosto de 30)

A “efemeridade” do tema satírico, ou sua atualidade, opõe-se, radicalmente, a certo distanciamento político dos textos líricos. No mesmo número de O Diário em que é noticiada a apreensão de navios brasileiros pelo governo alemão, um poeta apresenta um texto lírico-amoroso que parece alimentar-se de referentes muito diferenciados, quase silenciadores da tensão histórico-política.

Eu te queria recordar
a história esfarrapada
de todo nosso amor.
(Bolhas de Sabão, A.B. Maceió, ano 1, N° 41, agosto de 30)

Com a Revolução de 30, alguns fatos merecem especial citação, citação. Uma onda de anticomunismo varre os jornais; publica-se manchete com palavras de Oswaldo Aranha, “As misérias do comunismo”, e uma entrevista com um exilado russo constitui verdadeiro libelo contra a revolução de 1917.

Os textos humorísticos diminuem e Fernando Mendonça publica, com regularidade, poemas líricos, ao tempo em que um artigo defende a suspensão do Jornal de Alagoas por motivos políticos. É a imprensa censurando a si própria, de forma autofágica.

Em outubro de 30, sob o mesmo pseudônimo de Jatyr, um texto sintetiza a voz das classes que são colocadas à margem das lutas hegemônicas. A entrada de Getúlio, a queda de chefes políticos locais que a isso se seguiu, provoca uma reflexão satírica em que se evidencia a não participação popular efetiva nos governos deposto e emergente.

Caiu?
Sentiu?
Não sente?

Que horror!
Doutor!
Que gentes!

— Não fale
Se cale…
E expôs:

Sossego
Eu chego
depois.
(O Diário, Maceió, ano 1, N° 124, out. 30)

Segue-se uma onda de publicações laudatórias tendo como referência o Estado Novo. Cresce de tal forma o número de “convertidos Getulistas“, que Luis Lavenère publica duas crônicas de fundamental reflexão para o momento histórico: Cogumelos, em que critica adesistas de última hora e Elogios perniciosos — um alerta à imprensa alagoana, em que o autor encontra uma exagerada tendência de elogio ao Poder.

O Bacurau de agosto de 1925

O Bacurau de agosto de 1925

Se considerarmos que a sátira política se desenvolveu como possibilidade de reversão de condições históricas insatisfatórias, perguntamo-nos: por que houve, na imprensa local, um quase silenciamento das produções humorísticas? Por que na década de 30 se manteve um jornal diário de humor político e, atualmente, não vemos sequer um espaço nos grandes e médios jornais dedicado ao gênero?

As indagações que apresentamos chocam-se com um dado da modernidade: a quebra do patético, do que comove e desperta paixões. O texto moderno desautoriza o pathos, assim como os textos satíricos, agressivos e contundentes, o fazem. Por que, então, a modernidade em Alagoas coincide com um esvaziamento de produções literárias com fundo político?

Há um evidente esvaziamento de produções literárias em nossos periódicos. O texto de humor, à exceção das charges, nesse exíguo espaço, encontra enormes dificuldades de publicação; o Jornal A Ponte, editado pelo poeta Marcos Farias Costa, constitui um dos poucos esforços no sentido de veiculação de trabalhos literários e humorísticos. Paralelamente, os jornais abrem espaços para crônicas políticas (de não especialistas), não deixando vazios possíveis para leitores/criadores satíricos. Cremos que o monopólio da imprensa local (Grupo Gazeta de Alagoas) e sua relação explícita com o poder nacional, dificulta a possibilidade expressiva de crítica política.

Os textos de sátira política expuseram, na década de 30, o absurdo e as chagas sociais dos grupos hegemônicos; realizaram, com sua face agressiva, um dos efeitos mais significativos do texto literário e político. Referimo-nos ao caráter coletivo do texto poético que, na sátira, exorciza, pela linguagem, os demônios das incoerências, das contradições e mazelas dos governos instituídos. Reverte, pelo literário, a verdade apresentada nos códigos hegemônicos e propõe, fazendo graça, fazer História.

NOTAS

1) Mathew Hodgart, no livro La satira, reitera a noção de que o texto satírico pretende influir na conduta coletiva; uma das formas de intervenção é construir uma visão possível do mundo transformado. O Autor considera que é este o lado mais político da Literatura. A própria sátira anticlerical desenvolveu-se mais quando o Clero constituiu forma de poder, o oposto ocorrendo quando essa hegemonia religiosa atenua-se.

2) O procedimento satírico, ainda com Hodgart, pode valer-se de atitude parodística, em que se constrói um duplo processo enunciativo.

3) O patético constituiu elemento básico da tragédia e, mais modernamente, do Romantismo. O humor satírico rompe com suas proposições colocando o Grotesco, o mau gosto, o lado agressivo do humano.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1) HODGART, Mathew — La Satira, tradução espanhola, Angel Guillén, Guadarra-ma, Madrid, 1969.

2) KOESTLER, Arthur — Encyclopédia Britânica/Macropaedia.

3) Periódicos

  • O BACURAU — Maceió, ano V, N° 131, agosto de 1925 — Maceió, ano X, N° 224, novembro de 1930 — Maceió, ano X, N° 225, dezembro de 1930 — Maceió, ano X, N° 226, dezembro de 1930 — Maceió, ano XI, N° 234, fevereiro de 1931 — Maceió, ano XI, N° 235, fevereiro de 1931
  • O DIÁRIO — Maceió, ano 1, N° 7, ulho de 1930 — Maceió, ano 1, N° 41, agosto de 1930 — Maceió, ano 1, N° 27, agosto de 1930 — Maceió, ano 1, N° 59, agosto de 1930 — Maceió, ano 1, N° 61, agosto de 1930 — Maceió, ano 1, N° 71, setembro de 1930 — Maceió, ano 1, N° 78, setembro de 1930 — Maceió, ano lk N° 80, setembro de 1930 — Maceió, ano 1, N° 104, outubro de 1930 — Maceió, ano 1, N° 124, outubro de 1930 — Maceió, ano 1, N° 161, outubro de 1930

4) WANDERLEY REIS, Fábio — Política e Racionalidade: Problemas de teoria e método de uma sociologia crítica da política. Belo Horizonte: UFMG/PROED/RDEP, 1984.

*A coleta desses dados recebeu ajuda do Prof. Doutor Alfredo Leme Carvalho.

Publicado originalmente na Revista Leitura, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas do CHLA – UFAL. Janeiro e Dezembro de 1989/1990. Maceió, 1992.

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