Escravo do Congo com 120 anos foi descoberto em Maceió no ano de 1931

Lavoura de cana-de-açúcar retratada por Marc Ferrez em 1885

Engenho Carauna em Pernambuco, de Domingos de Souza Leão

Publicado no jornal carioca A Esquerda, de 27 de julho de 1931*.

Acaba de ser feita, em Maceió, a descoberta de um contemporâneo do primeiro Imperador. O jornal daquela cidade, — “A Notícia”, relata o fato dizendo tratar-se de um preto muito popular em Maceió. Chama-se Antônio Vila, é africano de origem e veterano autêntico da escravatura.

Leiamos agora a reportagem do referido jornal:

ANTÔNIO VILA DA COSTA

Antes de entrar na história: apesar de sua idade avançada, Antônio Vila ainda trabalha como pode. Vende carvão e faz recados para os brancos.

Mendigo é que ele não o é, provadamente. Pede esmolas, às vezes, para matar a fome, mas, isso, só depois de se desiludir de encontrar qualquer meio honrado de ganhar o níquel. Por isso, ele só pede esmolas à tardinha.

A redação do “Jornal de Maceió”, àquela hora, estava aberta. O início da luta de todo dia, a nota, o comentário, o telegrama. O trabalho que nunca tem fim e que o público nem sempre compreende.

Engenho Patrocínio em Atalaia, 1924

Antônio Vila viu as portas abertas, par em par, (os jornais são a casa de todo mundo) e entrou:

— Nhô moço uma esmola para o preto velho

— Nhô moço estava à procura de um assunto. Aguçou a curiosidade de investigar aquela velhice que Maceió inteira conhecia indiferentemente. E mandou entrar.

Foi então que ele narrou na sua bruta língua, a história de sua vida. Nascera no Congo, nas costas africanas. Um belo dia, apanhado por um navio negreiro, veio ter à nossa Maceió e aqui está há talvez mais de cento e dez anos.

AS FESTAS DO NAVIO NEGREIRO

O preto Antônio narrou que, sabendo, não fora às festas que se realizaram no navio negreiro que estava ao largo, com miçangas tentadoras para os olhos dos pobres pretos, sendo preso, porém, pelos piratas, numa caçada feroz pela praia, e levado, como muitos outros, — cerca de duzentos – para bordo.

Travessia longa e torturante para duzentos infelizes dos dois sexos e de todas as idades – recordou ele. Um dia, afinal, a nau lusitana aportou em Jaraguá.

Negro captado pelo fotógrafo Alberto Henschel em 1870

Estabelece-se então, entre o jornalista alagoano e o preto velho o seguinte diálogo:

— “Há quanto tempo foi isso?

— Faz muito tempo. Só sei Yoyô, que d. Pedro I era quem governava o Brasil…

— E como era Jaraguá nessa época?

— Não era nada Yoyô. A praia e o grande brejo tomavam tudo. Não tinha casa, não tinha gente.

— E você ficou aqui?

— Não Yoyô. O navio ficou aqui três dias e seguiu para Barra Grande, onde a negraria desembarcou e caminhou para Barreiros, para ser vendida. O dono do engenho Una foi o meu primeiro senhor. Comprou-me por vinte mil réis…”

Como se vê e já frisamos no meio desta correspondência, Antônio Vila da Costa, apesar de ter alcançado mais de 120 anos de idade, recorda os fatos e os esclarece com precisão. É uma pena que ele seja completamente analfabeto, o que o impossibilita de ser juiz de certas pendências históricas…

Mas, também, se assim fosse ele já teria sido devorado pelos arqueólogos…

COM MAIS DE 120 ANOS!

Ao redator do jornal alagoano que o entrevistou publicando interessante nota a respeito, Vila – o preto de mais de 120 anos – recordou o célebre Mata Marinheiro, que foi em consequência da abdicação de d. Pedro I.

Por ocasião da guerra do Paraguay, — recordou – com os olhos cheios de lágrimas – tinha um filho com 25 anos que foi recrutado, lá morrendo. Devia ter por esse tempo pelo menos 45 anos. Seguros, estão aí 110 anos que, com quebras, somarão os cento e vinte juntos que ele, o preto velho, calcula ter…

Escravos de uma casa grande na Bahia em 1870

Não exagerando a sua longevidade, Antônio Vila da Costa, pelo contrário, alude a tudo isso, simples e sorridente. E confirma, olhando-se-lhe a carapinha ainda meio preta, aqui e acolá, o velho adágio… Tendo vindo a Maceió com seu primeiro senhor, ele conta à A Notícia, de modo singelo, o que era a cidade nos seguintes termos.

— “Era mato ainda, Yoyô. Tinha a igrejinha de Nossa Senhora, que é hoje a catedral, algumas casinhas por ali mesmo, poucas ruas. No lugar onde hoje está o mercado havia uma engenhoca de fazer rapadura e um brejo de atolar a gente, que fazia medo. Havia pau que era preciso quatro machados para derrubar.

Depois Antônio Vila, passou a quatro senhores. Quatro senhores – ele o diz. E tem da vida miserável de escravo recordações bem dolorosas. E não as conta. Para que? Para que falar de coisas tristes, quando tudo passou? Antônio Vila pensa desse modo, e tem razão.

Se ele falasse das suas desgraças, das suas recordações, iriam pensar por aí que ele estava fazendo “fita”. Via-se, porém, que na sua memória se reconstituíam as cenas do cativeiro: os açoites bárbaros, o tronco, a gargalheira, todas as crueldades que a lei sancionava contra os escravos.

Mas, tudo isso que ele, mudo, recordava, passa quase repentinamente e vemo-lo depois, mais feliz, lembrando talvez, o alpendre da casa grande, a preta dengosa com quem casara, a mãe do seu filho e a senzala, com as toadas africanas para recordar a terra distante, de onde saíra pequenino, com dez anos apenas. Não tendo sofrido nunca tortura físicas, pois os seus senhores sempre foram seus amigos, Vila acha, no entanto, que escravo nem para comer presunto…

Só em 1888 o preto velho teve a sua alforria.

Andava beirando os oitentas anos por esse tempo. Mas, trabalhava ainda como podia. Começar a vida, com planos novos, bem traçados, era-lhe impossível. E, depois, nessa idade, vive-se a esperar a morte, a todo momento.

Às vezes ela atraiçoa, às vezes engana e não vem…, mas virá hoje ou amanhã…

De lá para cá Antônio Vila vende carvão, faz recados dos brancos, ganha dinheiro, pouco é verdade, porém honrado e bastante para o pouco que o seu estomago ainda reclama.

Se às vezes estende a mão para recolher esmolas é porque não achou nada para fazer: mas não é mendigo!

*Como Moreno Brandão era o “correspondente epistolar” da Agência Brasileira em Maceió, inclusive assinado outra matéria nesta mesma página do jornal, é provável que o texto acima seja de sua autoria.

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