Empastelamento de jornais em Maceió e o clima tenso do jornalismo político

Em 1938 Café Central do Cupertino

Jornalista e escritor Floriano Ivo Júnior

Floriano Ivo Júnior

A imprensa, em Alagoas, sempre foi irmã gêmea da política. Houve tempo, nos jornais de Maceió, em que, fazer imprensa, era fazer política, tamanha a vinculação de quase todos os periódicos à linha programática do governo e da oposição, ao pensamento doutrinário de determinadas lideranças com assento no Palácio Marechal Floriano, no Congresso Nacional ou na Assembleia Legislativa. E tivemos, de fato, lideranças radicais, agressivas, intransigentes, de um e outro lado, muito diferentes das lideranças de hoje, cordiais, tolerantes e compreensivas, mais ligadas ao plano das ideias do que ao individualismo político do passado, porque se encarnava a política, não como uma arte, mas como questão de honra.

Talvez, por essa sujeição da imprensa à política, no passado se empastelavam jornais com a mesma facilidade com que hoje se faz pastel. Melhor do que o noticiário tradicional, de origens fidedignas, procedência criteriosa e informação responsável, eram as notícias clandestinas, que corriam de boca em boca, tornando-se verdades pela divulgação nos jornais, sem se precisar de que fontes emanassem. Bastava isto para transformar o ambiente pacato de Maceió num turbilhão de medo, apreensões e desfechos trágicos. As notícias, assim, corriam paralelas à tiragem dos jornais, que nelas se cevavam, havendo sempre, pela manhã na porta do “Bar Colombo“, e à tarde, na porta do “Café Central“, os comentários do dia. Pipiu, tipo popular de longos bigodes, os teve arrancados a alicate, no largo do comércio, onde havia antigamente o Relógio Oficial, por ser identificado como autor de um boato contra o governo e divulgado no jornal da oposição com foros de verdade. Haviam ameaças veladas a diretores e redatores, em ligações anônimas de telefones, se continuassem alimentando certos escândalos, teriam o jornal quebrado, nas caladas das noites. Daí, para se empastelar o matutino, era um passo.

Cônego Antonio Valente, 1943. Primeiro Diretor do Jornal O Semeador

Na República Velha fazer jornalismo político em Alagoas era rasgo de coragem, desprendimento e renúncia. Situando o jornalista entre as fronteiras da agressão física, da desmoralização na via pública e do empastelamento do jornal em que trabalhava.

As vezes o atentado partia do próprio jornalista investido em função de mando, como ocorreu com o periódico “A Pátria“, do ex-Governador Fernandes Lima, empastelado no governo do Jornalista Costa Rego. Espírito liberal, diretor do vespertino católico “O Semeador“, Cônego Antônio Valente, que morava vizinho às oficinas do Jornal, na Rua João Pessoa, esquina com a Praça Pedro Il, pressentiu, certa noite, que se preparava o empastelamento de “A Pátria”. Naquele tempo, Maceió não tinha serviço de bombeiros, nem estação de rádio, de modo que, quando se precisava de fazer um comunicado urgente à população, a fim de que a cidade dele tomasse conhecimento, utilizavam-se os sinos das igrejas, fazendo-se determinados toques já conhecidos, para missas de defunto, missas festivas, falecimentos e irrupção de incêndios. No caso de “A Pátria”, que terminou sendo mesmo empastelado, Cônego Valente foi pessoalmente à Catedral, avançada hora da noite, abriu a igreja e começou a tocar o sino, espaçada e lugubremente, dando o toque de incêndio. Muita gente abriu janelas e portas, vindo à rua para assistir, mantida à distância, o vandálico espetáculo de empastelamento do jornal de Fernandes Lima.

Depois da Revolução de 1930, o exercício excitante de quebrar oficinas e redações continuou sendo posto em prática. Romeu de Avelar, nos idos de 1935, tinha um jornal “A Imprensa“, que funcionava na Rua do Comércio, onde foi, também, a “Gazeta de Alagoas“. Era de linha oposicionista, apoiando a candidatura de Silvestre Péricles ao Governo de Alagoas, contra a candidatura do Professor Osman Loureiro, que era interventor nomeado por Getúlio Vargas, mas também disputava a eleição de governador, em sufrágio indireto, a ser procedido na Assembleia Legislativa. Os autores jamais foram identificados, embora se fizessem suspeitas contra diversas autoridades de então, mas o fato é que, certa manhã, o jornal de Romeu de Avelar apareceu de portas arrombadas e empastelado, só danificada a edição do dia, que publicaria determinada notícia, e denunciada por um traidor, antes da circulação do jornal. Hoje seria uma informação “vazada”.

O ex-governador Fernandes Lima foi proprietário do jornal A Pátria

Durante o Estado Novo, quando a imprensa camuflou-se sob intenso manto da censura ditatorial, exercida pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) e em Maceió fiscalizada fecundamente pelo DEIP (Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda), o noticiário político deixou praticamente de existir, com o fechamento das casas legislativas e nomeações dos prefeitos. Os fatos locais, se podiam causar versões diferentes, antes de divulgados passavam pelo crivo do DEIP. Contudo, na interventoria do Major Ismar de Góes Monteiro, houve uma polêmica entre os ilustres e inteligentes homens públicos, doutores Lauro Montenegro, diretor do Fomento Agrícola, e Paulo de Oliveira, Delegado do Trabalho. Embora desaconselhado pelo Dr. Ari Pitombo, Secretário do Interior e Segurança Pública, pessoalmente a Afrânio Melo, Diretor do “Jornal de Alagoas“, o prosseguimento do debate determinou a prisão do chefe das oficinas, Filinto, a fim de que o jornal não circulasse no dia seguinte, isto já de madrugada, e pela manhã de Afrânio Melo, que morava num sítio, no trilho de ferro, por trás da fábrica Alexandria, no Bom Parto. As notícias, no entanto, continuavam circulando, em forma de boatos, o que levou o Dr. Ari Pitombo a instalar na porta da antiga Chefatura de Polícia, na Rua do Comércio, hoje, agência central da Caixa Econômica, a “Galeria dos Boateiros“, inaugurada com retrato de um comerciante português, o qual, ouvindo o boato na porta do “Bar Colombo”, teve a infelicidade de transmiti-lo a um “caboeta” da Polícia.

Também no governo de Silvestre Péricles ocorreu o empastelamento do “Diário do Povo“, de propriedade do Deputado Mello Motta. Saíra um editorial violento, sob o título “A verdade é mentira”, dizem que de autoria do falecido confrade Donizetti Calheiros. “O Diário do Povo” funcionava na Rua do Comércio, próximo da Gazeta de Alagoas, que era de propriedade do Jornalista e Deputado Federal Luiz Silveira, depois adquirida por Silvestre Péricles, em regime de sociedade limitada por cotas, para fins de registro cartorial, passando a ser o órgão noticioso do Governo. Contestando notícia da “Gazeta”, sobre o cerco da Associação Comercial, onde funcionava provisoriamente a Assembleia Legislativa, com poderes constituintes, “Diário do Povo” insultou, em linguagem desprezível, o Governo do Estado. Cedo da noite, em pleno movimento, isolando-se as esquinas das ruas Augusta ou Ladislau Neto e Tibúrcio Valeriano ou Beco de São José, ocorreu o empastelamento.

O jornalista e escritor Romeu de Avelar teve o seu A Imprensa empastelado em 1935

Houve, no entanto, um empastelamento em Maceió, do qual apenas uns poucos souberam, mas registrado em depoimento que prestei na Justiça, em processo movido contra o Estado por funcionário prejudicado em nomeação para outro cargo, cuja vigência do ato dependia de publicação no Diário Oficial, de onde fui Diretor no Governo Muniz Falcão. Eram os últimos dias do mandato governamental e, como sempre acontece em fins de administração, os pulmões do governo estavam no Diário Oficial, pois é da índole de todo governante que se preza fazer seu inventário político com o expediente de nomeações, aposentadorias, promoções, remanejamento de funções, efetivações, pensões especiais, para publicação no Diário Oficial.

Faltando cinco dias para terminar o governo, inexplicavelmente ou por mera coincidência, o Diário Oficial começou a circular atrasado e com número de páginas diminuído, sob a alegação do Chefe das Oficinas de linotipos quebrados, matrizes imprestáveis, doença inesperada de emendadores, impressoras apresentando defeitos. Mesmo assim, o jornal circulava com enforcamento de matérias, que ficavam para a edição seguinte. Constatei, então, que os operários estavam indecisos e o Chefe das Oficinas calado e aborrecido, como se, sob indignação, estivesse coagido a fazer o que não era de seu temperamento, obrigado a ferir seu dever profissional. Logo vim a saber, de pessoa de minha inteira confiança, que havia recomendação velada, vinda de fora, para não serem publicados certos atos de promoção na área civil e militar. Como não se podia pedir isto ao Diretor da Imprensa Oficial, o caminho seria mesmo pressionar o pessoal das oficinas, eles que iam ficar e temiam ser marcados pelo novo governo. Tomei a iniciativa de ficar circulando entre a linotipia, revisão e emenda, para apressar a saída do jornal. Quase o consegui, porque o expediente do Governador estava pronto e paginado, podendo o Diário Oficial circular ao meio-dia, com doze horas de atraso, quando a impressora começaria a imprimi-lo, uma velha máquina plana, hoje exposta à entrada da SERGASA como peça de museu. Sem causar desconfianças, um dos impressores que trabalhava no setor de obras gráficas, chegou meio embriagado e, sem ser visto, colocou um pedaço de pau na cremalheira da máquina. Foi o suficiente para provocar o empastelamento da composição. Ao rodar, a impressora deu um breque violento e toda composição foi jogada fora. Estava, portanto, consumado o propósito de evitar publicação das promoções no Diário Oficial.

Teimoso e persistente, como todo jornalista, ainda tentei recompor tudo, ajudado por Carlos Duarte, mas, às 16 horas, dava entrada no recinto das oficinas doutor Tininho, acompanhado do poeta Carlos Moliterno e do consultor jurídico Rubens Camelo, para me avisar de que havia um novo governo instaurado em Alagoas, Muniz Falcão seguira para o aeroporto e eu não era mais Diretor da Imprensa Oficial, que passasse o cargo ao meu substituto, embora não me mostrasse os atos de minha exoneração e de nomeação do novo diretor. Assim, enquanto o novo governador, no Palácio Marechal Floriano, ainda pronunciava seu discurso de posse, eu deixava a Imprensa Oficial sem ter sido demitido e Carlos Moliterno assumia sem ter sido nomeado. Este desfecho patético, bem ao espírito alagoano, esclarece tudo.

O Diário Oficial do dia 31 de janeiro de 1961, o último do Governo Muniz Falcão, jamais circulou, rodando no dia seguinte o de 1° de fevereiro, sem os atos do empastelamento, mas, com as nomeações do novo governo, constando no expediente de primeira página minha exoneração e a nomeação do novo Diretor, poeta Carlos Moliterno, a quem transmiti, horas depois, as funções de Diretor da Imprensa Oficial, constatando, como amigo, seu constrangimento pelo envolvimento involuntário no episódio da tarde anterior. Funcionários se reuniram e deram-me um belo presente como lembrança. Abracei e apertei as mãos de todos calorosamente. As moças, como o sexo frágil, brindaram-me ainda com uma lágrima furtiva.

NOTAS DO AUTOR

Este depoimento fiz questão de escrevê-lo pessoalmente para o “D.O.-Documento”, suplemento de pesquisa do DIÁRIO OFICIAL, a fim de retratar o primeiro ato clandestino de um governo na ocasião precisa de sua posse.

* Publicado originalmente no livro Crônicas e Depoimentos de 1992.

 

[COMPLEMENTO DA EDITORIA DO HISTÓRIA DE ALAGOAS]

O empastelamento da Voz do Povo em abril de 1964

O jornalista Anivaldo Miranda, que era do PCB e trabalhava no jornal, recorda que os agentes do Dops receberam ajuda da juventude fascista da Patrulha Nacional Cristã, um agrupamento liderado pelo professor de francês Vanilo Galvão Barros.O primeiro ato da Ditadura em Alagoas foi calar a imprensa e destruir a possibilidade de comunicação da esquerda. O semanário A Voz do Povo, jornal do PCB dirigido por Jayme Miranda, foi invadido e teve seus equipamentos quebrados, jogados na rua e queimados.

“Todos que odiavam os comunistas, sindicalistas, se dirigiram para a Voz do Povo para invadir o jornal, empastelar sua sede, quebrar as suas máquinas e fazer fogueira com seus móveis e papéis em plena rua, em cena de vandalismo que não se via em Alagoas desde os tempos coloniais”.

O jornalista Ricardo Neto também lembra do empastelamento da Voz do Povo. “Vi pela janela do jornal Gazeta, junto com Batista Pinheiro, Ilmar Caldas e Zadica, quando a Polinter começou a quebrar tudo. Todos de metralhadora. Uma lembrança muito viva, pela violência como se deu. Para mim, foi um choque. Aí nós caímos na real. Eu era repórter de polícia e o chefe da Polinter, que eu conhecia, estava lá”.

O Jornal de Alagoas, na sua edição de 5 de abril de 1964, informa que o chefe geral da Polinter, Albérico de Barros, “ocupou o jornal comunista ‘A Voz do Povo’, onde conseguiu apreender grande quantidade de importantes documentos entre os quais um deles que visava a eliminação de altas autoridades de Estado de Alagoas”.

(Parte da postagem: http://www.historiadealagoas.com.br/o-golpe-militar-de-1o-abril-de-1964-em-alagoas.html).

2 Comments on Empastelamento de jornais em Maceió e o clima tenso do jornalismo político

  1. Márcio Guedes // 11 de maio de 2017 em 18:55 //

    Ótima matéria. História de Alagoas pura. Deveria ser leitura obrigatória nas escolas.

  2. Sérgio Almeida // 21 de dezembro de 2018 em 12:14 //

    Os alagoanos deveriam conhecer a história de seu Estado e a matéria contribui muito pra isto. Infelizmente, poucos se interessam.

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