Doutor de defuntos: magoado pela exoneração Duda Calado acha que trabalho com mortos é uma vocação

Duda Calado foi exonerado do IML após trabalhar por 40 anos na instituição

Formado pelo Instituto Nina Rodrigues da Bahia, Duda Calado teve como mestre o Dr. Estácio de Lima

*Publicado originalmente na revista Última Palavra de 12 de fevereiro de 1988

Luís Duda Calado, 40 anos de convivência diária com o lado trágico da vida. Doutor Duda viu, sentiu, cheirou e exumou milhares de cadáveres no Instituto Médico Legal Estácio de Lima, presenciando cenas grotescas como cabeças decepadas, corpos incinerados e crivados de balas, miolos estourados e membros arrancados. Uma profissão que muita gente não ficaria por nenhum dinheiro do mundo, mas para ele “uma vocação natural”.

— “Foi uma falta de respeito irreparável, uma terrível injustiça e imperdoável falta de consideração ao Doutor Duda”. Esse foi o comentário geral e a indignação de jornalistas, policiais, taxistas e populares quando foi divulgada a exoneração sumária, sem explicações, do diretor do Instituto Médico Legal Estácio de Lima (IML), o médico legista e professor Duda Calado, desde a sua fundação, em 21 de setembro de 1947.

A portaria foi assinada por um ex-aluno seu, o secretário Zeca Torres, da Secretaria de Segurança Pública, órgão a que o IML sempre esteve vinculado. Fundador e diretor do IML durante 25 anos, realizando autópsias em cadáveres exumados e expedindo laudos e óbitos, o “velho guerreiro” Duda Calado não foi consultado sobre seu afastamento e nem sequer sugeriu seu sucessor.

— “Fiquei surpreso e muito triste com a decisão do secretário. Minha intenção era mesmo deixar o IML, mas tive o desprazer de não ser comunicado, soube do ocorrido por um delegado de Polícia”, diz Calado. Para o médico legista tudo não passou de uma trama política e um caso familiar: “O deputado Emílio Silva, atual secretário do Trabalho, pressionou Zeca Torres para nomear seu cunhado, Geraldo Santos, no que foi atendido prontamente”, acusa Duda Calado que não teve a oportunidade de escolher seu sucessor. Marcos Peixoto, por muito tempo seu auxiliar no IML.

Barra pesada

Para o Doutor Duda Calado, “trabalhar com defunto é uma vocação natural”, mas ele jamais esquecerá aquele caso escabroso: uma jovem mulher assassinada pelo mando ciumento com 127 facadas por todo o corpo: “Contei uma por uma as facadas com os palitos que coloquei em cada corte do corpo dela”. Segundo Duda Calado, o criminoso foi condenado a 18 anos de prisão, mas já está solto.

Duda Calado voltou a trabalhar no Banco de Sangue da Santa Casa de Maceió

A falta de condições de trabalho e atendimento do IML não é de agora. Tudo chega a ser tão absurdo, que para exumar cadáveres em decomposição o Doutor Duda tem que recorrer a instrumentos estranhos para se proteger do fedor do morto: folhas de manjericão enfiadas nas narinas para aliviar o mau cheiro.

— “Nunca, em nenhum governo, o IML foi olhado ou tratado como deveria ser. Sempre ficou relegado a segundo plano, sem o apoio de ninguém. Morto não dá voto, mas, no entanto, temos que enterrá-los em covas rasas, às vezes sem a presença da família, como indigente”, afirma, magoado Dr. Duda.

Se não fosse a improvisação e a força de vontade de quem faz o IML e a própria comunidade, o Instituto Médico Legal já teria se transformado na “Casa dos Horrores”. Para se ter uma ideia, durante algum tempo a geladeira do IML (onde os cadáveres são conservados), foi a câmara frigorífica da Colônia de Pescadores de Penedo: “Que foi adaptada e utilizada para guardar os mortos, que acabaram ficando podres pois a câmara não tinha temperatura com capacidade ideal de conservação”, explica.

Vovô Duda

Antigo Instituto Médico Legal, onde funcionou a prisão militar do 33º Batalhão de Caçadores

A história do IML se confunde com a vida do cidadão Duda Calado. Como um bom médico, Duda sempre informa aos funcionários do IML onde está localizado. Mas nem precisa: “Toda minha vida foi o IML, minha rotina diária era acordar às 5 da manhã, ir ao IML e só sair oito horas da noite. Nunca deixei de realizar necropsias em dias feriados, dia Santo, sábados e domingos”.

Mas todo esse trabalho tem seus méritos. Eleito por membros de sua classe, Duda Calado é o mais novo Sócio Benemérito da Sociedade Brasileira de Medicina Legal, e quando vai a algum Congresso, diz Duda, “meus colegas começam a tirar graças: Chegou o vovó da medicina legal brasileira”.

Formado pelo Instituto Nina Rodrigues da Bahia, uma das mais tradicionais escolas de medicina legal do país, Duda Calado teve como mestre o próprio Estácio de Lima, alagoano que deu o nome ao IML. Neste tempo, conta Duda, “não existia residência médica, os professores e alunos eram quem ajudavam a comprar papel e fazer o pagamento do pessoal”. Na Bahia passou seis anos e logo depois de formado veio dirigir o Serviço de Identificação e Medicina Legal que funcionava no necrotério da Santa Casa. Só em 1963 é que o IML veio ter uma sede própria, ao lado da Faculdade de Medicina. De lá para cá, Doutor Duda Calado se manteve como diretor do Instituto, viu se alternarem 98 secretários de Segurança, mas no IML tudo permanece o mesmo, quando não piorou: “sinto dizer isso, mas se não cuidarem do IML ele vai morrer lentamente, como muitos mortos que por ele passam”.

Sangue nas veias

Mesmo com a exoneração inesperada, o Doutor Duda Calado não vai parar, como ele mesmo diz. Retomando seus trabalhos no banco de sangue da Santa Casa de Misericórdia, fundado em 1943 e desde lá funcionário da casa.

— “Sou um homem de sete instrumentos e não vou parar, vou continuar a atender a esse povo bonito de minha terra. Agora vou atuar no banco de Sangue da Santa Casa, onde cheguei a fazer transfusões braço a braço, salvando vidas ou emitindo atestados de óbitos, pois a vida é assim mesmo. Me orgulho de nunca ter cobrado uma consulta, pois os ricos são meus amigos e os pobres não podem pagar. Trabalho com amor”, diz o médico legista Duda Calado.

Agora, Duda Calado divide seu tempo com o trabalho na Santa Casa, a família e sua preciosa coleção de relógios importados de paredes. Todos os dias, num trabalho rotineiro, Duda dá corda nos 52 relógios de sua coleção: “não deixo atrasar um minuto sequer, e todos batem numa só hora. Esse é meu passatempo predileto e meu “hobbie“.

3 Comments on Doutor de defuntos: magoado pela exoneração Duda Calado acha que trabalho com mortos é uma vocação

  1. Antônio José Vassalo Jatobá. // 5 de maio de 2017 em 20:45 //

    Um homem que honrou a medicina e o serviço público.
    Um nome para ser reverenciado por quantos prezem o povo das Alagoas.

  2. Fernando Augusto de Araújo jorge // 6 de maio de 2017 em 06:49 //

    Conheci Duda Calado, meu mestre e professor na cadeira de Medicina Legal, que a dividia com o Dr Zé Lopes. Dizia o mestre, com imenso orgulho que nunca morreu num de seus pacientes. ” lógico, todos eram defuntos”

  3. Muitos dessa geração que trabalha no MIL deveriam ter 10% do brilho deste guerreiro.

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