Como se erradicou a venérea em Alagoas

Rua da Alfandega, atual Rua Sá e Albuquerque em Jaraguá no início do século XX
Cais do Porto, em Jaraguá, nos anos da década de 1940

Cais do Porto, em Jaraguá, nos anos da década de 1940

J. F. Maya Fernandes
(Extraído do livro Histórias do Velho Jaraguá, Maceió, 1998)

Poucas pessoas podem recordar o tempo do Dr. Cláudio Magalhães como Diretor de Saúde Pública de Alagoas e do Dr. Barca Pelon, encarregado, pelo Governo Federal, de erradicar a venérea do pós-guerra no Brasil redemocratizado, mas ainda vivendo os cacoetes da ditadura do Estado Novo. E o resultado foi o que veremos nessa história.

Os médicos da campanha em Alagoas eram Ednor Bittencourt, Antônio Gerbase e Radjalma Rego, gente cheia de entusiasmo e competência apoiada por muito dinheiro para mover uma poderosa máquina sanitária em Jaraguá, com a cooperação dos órgãos públicos de Saúde e o apoio irrestrito do delegado policial do bairro.

Abarrotaram-se os postos sanitários com muito medicamento, em especial penicilina, sulfamida, arsenox, conhecido como 914, permanganato, profil, camisas-de-vênus.

O Hospital Constança, no Prado, montou uma enfermaria chamada CTR – Centro de Tratamento Rápido – para tratar mulheres contaminadas, com internação, de onde só saíam completamente curadas. Seu horário era seguido à risca: atendimento pela manhã às mulheres casadas; pela tarde, prostitutas; pela noite, homens. E as preocupações principais estavam na sífilis, na gonorreia, na quarta venérea, que o povo chamava de “mula”, outros “denite”, nos cancros mole, duro e misto, no papiloma ou “crista de galo” e num tal de “chuveirinho”, isto sem falar na sarna, no chato e na impigem que dava em forma de enormes manchas.

Jaraguá e algumas casas da Rua Sá e Albuquerque abrigaram por muitos anos a chamada Zona do Meretrício de Maceió

Jaraguá e algumas casas da Rua Sá e Albuquerque abrigaram por muitos anos a chamada Zona do Meretrício de Maceió

As recomendações das autoridades eram de guerra santa contra o mal, no sentido da prevenção do contágio, sem contudo impedirem as atividades do meretrício, consideradas por todos não apenas como um mal necessário, mas uma fonte inesgotável de prazeres, uma garantia de que não se ficaria doido por estar o instinto insatisfeito, contido nas normas sociais e de conveniência religiosa, palavras de vigário.

Havia no bairro, perto da rua do Duque, um Posto de Profilaxia que deixou muitas recordações porque o trabalho por lá era ágil, proveitoso e animado, onde chegavam os mais prudentes para tomar banho com sabão e depois uma lavagem do enfermeiro com permanganato de potássio. Outros se antecipavam recebendo grátis uma ou mais camisas de vênus, e um tubinho de Profil, medicamento eficiente e ardido para depositar no canal do membro depois do ato.

Naquela época, o piolhinho chato, que dava em camadas até nas sobrancelhas do pessoal, era combatido com um preparado de Jair Uchoa, competente farmacêutico estabelecido na cidade. Ele ia logo avisando que o preparado devia ser diluído antes do uso, para o paciente não reclamar do ardor nas virilhas e não ficar andando de pernas abertas pela queimadura do remédio. E era bom que dele o indivíduo se livrasse porque também transmitiam a sífilis, segundo pensavam.

Havia obrigações a cumprir por todas as bandas. As cafetinas tinham o dever de comunicar e encaminhar as novas meninas ao Posto Central do Serviço de Doenças Venéreas na Praça das Graças, Centro, para exame e fichamento, de onde já saíam com a respectiva carteira de saúde.

Também a cafetina era obrigada a levar as novatas para fichamento na 2ª Delegacia porque se tinha como certo um caso policial qualquer com aquela espécie de gente potencialmente predisposta, segundo as autoridades, ao roubo e arruaças com marinheiros, militares em trânsito e desordeiros.

O Delegado de Jaraguá percorria as zonas com certa frequência, verificando o cumprimento das ordens, uma das quais a de colocar cartazes dentro dos quartos: “Peça a Carteira de Saúde“, verificar se havia alguma rapariga sem a carteira, ou se estava o documento em dia, no que era ajudado pela cafetina.

Rua Sá e Albuquerque, em Jaraguá, região portuária da capital

Rua Sá e Albuquerque, em Jaraguá, região portuária da capital

Havia ainda a obrigação de patrulhar todo o bairro onde minasse o negócio da prostituição, havendo também uma rede de informantes da Polícia e do Serviço:

– Doutor, tem uma casa de mulheres e é clandestina, disse um deles no Posto da Praça das Graças.

– Avise à Polícia, ordenou o médico ao funcionário.

E para lá se dirigia o delegado intimando todo mundo a se apresentar no Posto, o que ocorria com alarde, pois a praça amanhecia cheia de mulheres, cafetina à frente providenciando atendimento.

Num dia comum. Carlos Mantiqueira, fiscal do Posto Central de Combate às Doenças Venéreas, passou pelo Posto de Profilaxia de Jaraguá, ao lado do Verde e do Duque, onde um indivíduo apresentava uma gonorreia. Ele fora trazido por um policial porque uma rapariga do Verde, seguindo instruções rigorosas para examinar o freguês, negou-se a ficar com ele, apontando-o à cafetina que logo foi até o Posto, para a obrigatória denúncia.

Foi quando, diante da comissão de “combate”, disse:

– Veja, Doutor, só agora notei que estou desse jeito! o homem disse para o médico, enquanto abaixava as calças e mostrava seu membro avariado que apertava e de onde escoava abundante um líquido amarelo-limão gotejando no mosaico do piso.

– Essa é “de bico”! exclamou admirado o enfermeiro ao lado.

Mantiqueira abriu então a conversa perguntando ao queixoso:

– Você andou com quem? Agora você tem que ajudar porque é ordem do Governo. Onde você andou, rapaz?

– Não, doutor, (respondeu amedrontado) não fiquei com puta não, quem me passou a desgraça foi a Samica, em Cruz das Almas. E Mantiqueira, ainda imbuído do Estado Novo e seu espírito inquisitório, saiu incontinente atrás da fonte de contágio, com as referências que lhe foram dadas, e voltou horas depois trazendo a mulher que chegou chorosa e indignada, dizendo-se a toda hora família. Mas, examinada, estava doente, de fato.

E Mantiqueira, tenaz em seu moralismo sanitário, procedeu a novo interrogatório com a mulher:

– E você andou com quem? Vamo logo dizendo! É ordem do Governo!

Muito constrangida, mas diante da evidência dos exames procedidos e da insistência autoritária a que se submetia, confidenciou para um enfermeiro, um médico e o fiscal Mantiqueira:

– Eu fiquei com o sargento delegado de Riacho Doce, doutor, mas pelo amor de Deus, eu sou amigada!

– Com ele? indagou Mantiqueira.

– Não senhor! Acuda-me meu protetor Santo Amaro agora tenho que dizer … ele é casado.

– O seu amásio é casado ou é o sargento? perguntou Mantiqueira.

– Não, Seu Moço, é o sargento, respondeu a coitada.

– É o tal sargento que é casado, não é assim? … mas então quem é o seu amásio? insistiu o investigador.

– É o Dedé. Chamam ele de Dedé. Ele é postalista e mora no oitão da Igreja de São Francisco. Eu fico com ele mais ou menos infetiva, esclareceu novamente a mulher.

E então Mantiqueira, no espírito de erradicação da epidemia, saiu em diligência pela terceira vez para buscar o sargento policial que veio logo dizendo:

– Doutor, não precisa nem examinar, por coincidência infeliz o membro está “esquentado”.

Por via de consequência, pegaram também o enganado Dedé, um homem quieto, rotineiro e pouco conhecido até da vizinhança. Mas, examinado, lá estava também o gonococo, porém Mantiqueira logo concluiu que o homem era de uma mulher só, e que, com ela pegara a gonorreia do sargento, ou do tal rapaz infectado do início das investigações.

Verificando que tinha que esgotar o assunto, porque parecia que não teria fim, Mantiqueira fez comparecer ainda ao Posto a esposa do sargento que se queixou de urina ardida como se estivesse misturada com areia fina, e foi imediatamente encaminhada para o Hospital Constança, mas antes disse que era muito fiel ao marido e portanto não contaminara ninguém, já que o funcionário Mantiqueira estava tão preocupado com o assunto que até chegou a perguntar pela sua conduta como esposa.

Contou também um detalhe curioso, referindo-se ao marido:

– Ele me disse que esquentamento se pega no banheiro quando o piso tá frio de manhã cedo, e me mandou tomar chá de limão e um pingo de arnica todo dia antes do café, terminando, assim, a incrível sequência policial sanitária iniciada com um queixoso no Posto de Profilaxia de Doenças Venéreas de Jaraguá, mas ainda restava uma dúvida ao Mantiqueira: quem, na verdade, contaminou Samica?

E quantos possivelmente ela contaminou? Direitos humanos à parte, foi assim que se erradicou a venérea em Alagoas … por alguns tempos.

3 Comments on Como se erradicou a venérea em Alagoas

  1. Fátima Gomes // 26 de setembro de 2015 em 22:58 //

    Muito bom texto!

  2. Claudete C santos J // 28 de setembro de 2015 em 02:33 //

    Estou encantada pela fotos. Publique mais eu sou fã.

  3. Delma Conceição de Lima // 28 de setembro de 2015 em 21:50 //

    O que achei interessante de tudo isso visto no texto, é a organização e a interação para resolver um problema de saúde. Bem diferente dos dias de hoje; com certeza haveria muita dificuldade pra resolver da forma como o texto apresenta. Ótimo texto!

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