Casa de Pensão

Texto extraído do livro Se não me Falha a Memória, de Aloisio Costa Melo

Rua Barão de Anadia e a Estação Central
Aloisio Costa Melo foi um consagrado memorialista

Aloisio Costa Melo, consagrado escritor e memorialista alagoano

Aloisio Costa Melo

A pensão de tia Nazinha ficava bem no começo da rua do Aterro, entre a estrada de ferro que passava ao lado e o quartel do 20º Batalhão de Caçadores. No largo amplo e arborizado, em frente ao prédio da guarnição militar, passávamos a maior parte do nosso tempo disponível em barulhentas e disputadas partidas de futebol que terminavam sempre em confusões.

Os hóspedes, na sua maioria, eram soldados do batalhão. Eu fui alojado no pequeno quarto ao lado da sala de refeições, juntamente com os primos Nélson e Zé Maria, dormindo em estreitas camas patentes, colchões de capim já duros e achatados pelo uso. A camarinha possuía três portas partidas ao meio, uma só funcionando, as outras impedidas de abrir por causa das camas que ficavam encostadas.

Estava em Maceió para fazer exame de admissão ao Liceu Alagoano. Fui matriculado no colégio do professor Higino Belo, um casarão com alpendre lateral, dois cômodos improvisados em salas de aula e o professor morando com a família na parte dos fundos. Beco São José, esquina com a rua Boa Vista. Menino do interior, matuto e arredio, meu relacionamento com os colegas não foi fácil e ficou restrito a uns poucos. Difícil recordar suas fisionomias, seus nomes, mesmo porque minha permanência no curso durou apenas um ano. Ainda lembro meu pai apresentando-me ao professor:

Capa do livro Se não me Falha a Memória, de 1992

Capa do livro Se não me Falha a Memória, de 1992

— Quero ver se esse moço dá pra gente…

Fui reprovado nos exames. Meu pai ficou brabo, falou das despesas e sacrifícios que fazia. Na casa de tia Nazinha a vida corria sem maiores problemas. Quando não estava estudando, saía com o Nelson e o Aiu em vadiação pela praia do Sobral onde disputávamos animadas peladas ou improvisávamos brincadeiras na areia muito branca e muita fina das dunas que enfeitavam a orla. Mesmo com a perna defeituosa, capengando e correndo aos pulos, eu tinha atuação ativa no jogo, misturado com os meninos da vizinhança e com a molecada do Ouricuri. Aiu, os pés tortos, com o solado virado para cima, participava como goleiro. E a turma, aos gritos, não perdoava suas falhas e malhava o coitado:

— Segura a bola Pé de Pato!

— Olha o frango, Manquitola!

Na pensão o movimento era maior pela manhã, na hora do almoço. A xepa deixava muito a desejar, mas ninguém reclamava. No café sempre o pão, angu de milho com açúcar, batata doce, macaxeira, inhame, banana cozida. Quase nunca variava. Ovos muito raramente. Só os sargentos Durval e Waldomiro tinham o privilégio de ovos estrelados todas as manhãs. Eram os pensionistas mais importantes. O restante, soldados e cabos, alguns comerciários. Eu, às vezes, me considerava ludibriado porque grande parte daqueles ovos eram remetidos por minha mãe para ajudar na minha manutenção, esquecendo que a minha permanência ali era gratuita.

Rua do Aterro, atual Barão de Anadia e a Estação Central

Rua do Aterro, atual Barão de Anadia e a Estação Central

Logo cedo começavam as atividades na casa. Tio Alceu dormia num quartinho dos fundos, úmido e atravancado de trastes velhos de todo tipo, que chamavam de cafua. Tinha uma perna fina, mais curta, consequência de uma paralisia dos músculos sofrida há muitos anos. Antes embarcadiço, viajando e conhecendo o mundo em velhos navios mercantes, arranjou depois um lugar de conferente de bordo e trabalhava no porto esporadicamente. O serviço demorava até que o navio fosse carregado ou descarregado e rendia razoavelmente. Logo cedo ele era acordado pela mulher que não poupava aspereza e xingamento:

— Acorda dorminhoco, tá na hora do pão e de ir para o mercado!

O velho, magro, alquebrado pelos anos, tossindo muito, deixava a sala capengando e ia apanhar a bolsa de palha para fazer as compras. E tia Nazinha era quem realmente dava um duro danado para manter a casa e sustentar seus cinco filhos, dos quais só o mais velho trabalhava. E ainda por cima a casa vivia sempre cheia de visitas e hóspedes gratuitos que chegavam a Maceió para tratar de negócios, fazer compras ou consultas médicas. Gente do interior, parentes e afins. E ela, magrinha, sempre de mau humor, não parava nem descansava um só instante no vai e vem de sua atividade. Reclamava permanentemente da trabalheira e das dificuldades de vida, não poupando ninguém de suas indiretas e censuras. Merecia respeito e era temida pela sua maneira franca de dizer as coisas:

— É isto mesmo minha gente. Gosto de ser positiva. Quem não gostar…

Ilustração de Mário Aloisio para o livro

Ilustração de Mário Aloisio para o livro

Mas possuía um coração de ouro escondido no corpo magro e na aspereza de seus desabafos. Ajudava a todos que a procuravam, principalmente a parentada do interior. Havia sempre um cantinho para uma cama de lona ou um colchão para alojar quem chegasse e, na mesa, um prato a mais. Conhecia meio mundo, mantinha relações de amizade com muita gente. E sabia cultivar essas amizades. Arranjava empregos, vaga em hospital para doentes, matriculava menino em colégios, conseguia transportes gratuitos, internações em asilos e orfanatos…

Quase sempre, depois do café, trocava rapidamente de roupa, apanhava uma bolsinha de couro já gasta pelo tempo e saía, passinhos ligeiros, determinada. Procurava pessoas amigas e influentes e ia resolvendo ou encaminhando os problemas surgidos quase todos os dias. Falava com figuras importantes, funcionários do governo, secretários, provedor da Santa Casa, Dona Antonieta Cansanção, Padre Valente, Tarcísio de Jesus, Araújo Costa, Sargento Durval, Oséas Cardoso, D. Suzana. Com seu vasto relacionamento ela não media esforços nem dificuldades no sentido de ajudar os amigos, de resolver seus casos. E para ela nada ou quase nada. Conservou-se sempre pobre, humilde e sem ambições pessoais.

Próximo à hora do almoço lá entrava ela pelo corredor a dentro, afogueada, indo diretamente à cozinha para ver o andamento dos serviços. Tio Alceu, a perna dobrada sobre a cadeira, lendo o Jornal de Alagoas e comentando as coisas do futebol e da política. Torcedor fanático do CSA, chegava a se exaltar em suas discussões, provocando a censura da mulher:

— Cala essa matraca, Alceu!

Av da Paz e Praia do Sobral em foto de Stuckert de 1959

Av da Paz e Praia do Sobral em foto de Stuckert de 1959

O pessoal ia chegando a partir do meio-dia. A mesa não dava para todos. Primeiramente os pensionistas mais velhos e mais importantes. A comida pouco variava. Picadinho e bifes com feijão, arroz e farinha de mandioca. Banana ou doce de rodinha como sobremesa. Nas sextas-feiras o ensopado de sururu, peixe ou camarão. Aos domingos havia sempre galinha à cabidela ou cozido de carne com pirão e verduras. Os de casa e a turma miúda somente iam para a mesa depois dos hóspedes se retirarem. Isso tumultuava tudo e resultava em que a boia nossa era sempre inferior, em menor quantidade e quase sempre fria. Na cabeceira da mesa aboletava-se tio Alceu de maneira desengonçada, falando alto, comentando a crise, contando piadas. A mulher se arreliava e resmungava sua desaprovação enquanto ia e vinha da cozinha:

— Traste sem serventia!

O velho não se alterava com a indireta. Continuava a parolar e, depois de fumar um Selma, recolhia-se ao quartinho dos fundos para uma soneca. À tardinha saía para a praia do Sobral, onde ficava horas esquecidas espichado à sombra dos coqueiros.

Circunscrição do Serviço Militar do Exército. Antigo Forte São João e Enfermaria Militar

Circunscrição do Serviço Militar do Exército. Antigo Forte São João e Enfermaria Militar

Depois da ceia, quase sempre, era iniciada a sessão de víspora que se prolongava até altas horas da noite. Cartões marcados com grãos de milho ou feijão. Apostas pequenas em virtude da pobreza dos participantes. Um tostão, quinhentos réis ou mesmo mil. Só valia a quina horizontal. O jogo era movimentado e alegre, com discussões, chistes engraçados. À medida em que faltava dinheiro diminuía o número de jogadores e aumentava o dos que peruavam O vitorioso, para frustração dos demais, gritava a plenos pulmões quando marcava o último número:

— Bati! Quina!

A sacola com as pedras numeradas passava de mão. Alguns faziam charme, provocavam suspense, gritavam os números vagarosamente; outros usavam termos especiais e já conhecidos, aumentando a algazarra:

— C’as trouxas na cabeça!

— Tanto pra cima como pra baixo!

—O ronco do porco!

— Dois patinhos na lagoa!

E o número 24 era quase sempre anunciado com malícia e gozação:

— Dirceu, Togo e Rubinete!

De vez em quando surgiam brigas e discussões por supostas trapaças; e o bingo terminava inesperadamente.

A dormida era insuportável nas épocas de verão. O quartinho atravancado de camas e sem ventilação tornava o calor sufocante, o corpo pegajoso de suor. E o banho um problema, pois a água era escassa e não havia chuveiro. Banho de cuia. A falta de pressão nos canos impedia que o líquido chegasse ao tanque que ficava nos fundos. Um serviço cansativo o de transportar o líquido da rua para a cozinha. Ninguém se dispunha de modo voluntário a realizar a tarefa, que acabava ficando mesmo com a Luzia, a cozinheira. Doente, os tornozelos inchados, assim mesmo ela conseguia transportar baldes para a serventia da cozinha. E o xingamento vinha na hora:

— Cambada de preguiçosos!

1 Comentário on Casa de Pensão

  1. JOÃO EVANGELISTA SLVA // 15 de fevereiro de 2016 em 23:07 //

    A Memória dos antepassados (que plantaram boa semente em nossas terras alagoanas) deve ser continuamente preservada por quem se dedica a esse mister, destarte possibilitando as castas novas se deleitem sobre aquilo que não acompanharam, no seu nascedouro, e que de fato, contribuiu com a civilização de um povo mui próspero e feliz. A pena dourada de Aloísio Costa Melo trabalhou arduamente com o propósito de deixar registrado para a posteridade os verdadeiros escritos a cerca dos grandes marcos históricos que contribuíram com alicerçado fundamento à construção da nossa cidade metrópole.

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