A Pedra, paisagem alagoana

Artigo publicado na Revista da Semana de 19 de abril de 1924, no Rio de Janeiro, descrevendo a visita do repórter Octavio Tavares ao povoado da Pedra, atual município de Delmiro Gouveia em Alagoas

Pedra em 1929 com a igreja de 1920
Companhia Agro Fabril Mercantil, produtora da linha Estrela, na Pedra

Companhia Agro Fabril Mercantil, produtora da linha Estrela, na Pedra

Por Octavio Tavares

Quando cheguei à Pedra, o sol ardia gloriosamente. Duas horas abaixo ficara Piranhas, com a sua igrejinha de torre esguia e branca, as suas casas modestas escalonadas pela montanha, todo o seu aspecto interessante de presepe, desdobrada em arco á margem do rio São Francisco, defrontando-se com as verdes matas de Sergipe.

Da Pedra, o que se dizia era de molde a infundir curiosidade. Era a pérola do sertão alagoano, resplandecendo no seio profundo das selvas, arrancada do nada pela fibra hercúlea de um homem só, que a criara ao poder da sua inquebrantável energia.

O trem da “Great Western“, sacolejante e sujo, parara. Em torno, emergindo dentre os penachos dourados das flores do algodoeiro, os arruados de palha, esses humildes casebres com suas toscas paredes de barro, e seu teto de palma de coqueiro, que dão a feição típica aos nossos sertões.

A garotada, de ventre inchado e tez queimada pelo sol, doidejava, irrequieta, com as camisolinhas adejando ao vento, numa alegria ruidosa e ingênua. Ao longe voavam, na poeira de ouro do sol, as garças brancas, como se fossem flocos de algodão dispersos pelo ar.

A Pedra não era isso. Não era toda essa poesia rude e boa que encantava o olhar. Era bem mais do que essa primeira visão; era essa casaria, alva de neve, que rutilava ao sol com um esplendor de lenda.

Delmiro, em foto posada de 1891

Delmiro, em foto posada de 1891

A “palha” ficava de fora. Por dentro do cercado de arame — a muralha daquele povoado sertanejo — estava a Pedra polida.

A de fora, a humilde, a primitiva, com os tetos de palha ondulando ao vento, era a “pedra” rude, tosca, talvez a pedra lascada da idade histórica daquele ermo hoje cheio de vida.

Uma vila? Uma cidade?

Nada! Apenas um povoado! Um povoado e mais nada! E, no entanto, quantas vilas e quantas cidades, por este Brasil a dentro, mais humildes, com menor número de almas, com a minima importância industrial!

A Pedra parecia haver sido edificada naquele mesmo dia. As ruas — ruas, não: verdadeiras avenidas — de terra batida tinham a limpeza dos dias de festa. Eram elas um só telhado, de uma ponta a outra, sem solução de continuidade. Assim de una lado e de outro. Uma ou outra, porém, oferecia uma ligeira diferença, como para quebrar aquela monotonia de construção: acompanhando os acidentes do terreno, aquele telhado único partia-se ás vezes, oferecendo no ar o mesmo degrau que se via no solo.

Única exceção. E em todas aquelas avenidas, que recordam datas e vultos da nossa história, os telhados descem, rampados, e pousam em colunas alvíssimas, pouco distantes umas das outras. Entrecortam-se, perpendiculares, rigorosamente perpendiculares, denotando a preocupação geométrica do traçado.

Nas extremidades, as praças, com os seus bebedouros higiênicos, dos quais brota a água cristalina, captada, quatro léguas adiante, da queda majestosa da cachoeira de Paulo Afonso.

Vila Operária da Pedra. Acervo Museu Delmiro

Vila Operária da Pedra. Acervo Museu Delmiro

Uma vez por semana, numa das praças, faz-se a “feira“, esse outro aspecto típico dos sertões. Vêm de bem longe os vendedores. Batem pelas estradas cheias de sol, pelas matas olorosas, ao passo cadenciado da montada.

Muitas vezes vão a pé, tangendo as animarias com os cestos ao lombo, cheios dos produtos da sua agricultura rudimentar e humilde.

A animaria é, em geral, o jumento, o “jegue”, como o chamam em Alagoas e Sergipe, com seu ar filosófico, as grandes orelhas empinadas, a cauda fina e longa a oscilar como um pêndulo, ao leu da andadura pesada, de uma para outra das pernas traseiras.

Chegam ao povoado. Na terra batida do chão expõem as mercadorias: são os frutos locais, os ovos, o feijão, a rapadura, a carne sol, alimentos e bugigangas, bebidas e animais… Em torno, na praça, pelo dia quase todo, enxameia a multidão.

A gente do lugar acocora-se diante dos toscos mostruários, improvisados sobre caixotes e sacos de aniagem, e escolhe uma, duas, dez vezes, regateia, discute… A cena é a mesma sempre.

A noite vem descendo. O crepúsculo no sertão é soberbo! Ao longe, nas cercanias da Pedra, as garças vão pousar sobre as árvores, como se elas florescessem subitamente, ao crepúsculo, abrindo em grandes flores de alvura imaculada.

Área interna da Fábrica da Pedra

Área interna da Fábrica da Pedra

Acendem se as luzes. E a Pedra parece estar em festa, esplendida, resplandecente, ardendo triunfalmente. Sob os telhados, por traz das colunas, as lâmpadas faíscam, com uma luz muito branca que lhes dá energia maravilhosa da cachoeira próxima.

E a brancura das casas avulta mais ainda, essa brancura que dá a impressão precisa de que a Pedra tenha surgido, por encanto, no momento em que a contemplamos. Porque os moradores, aquelas centenas e centenas de operários, são obrigados, pelo abençoado regime da terra, a caiar todos os meses as suas casas, dando-lhes esse aspecto agradável e risonho que têm sempre.

O regime da Pedra é quase ditatorial; mas é salutar. A fabrica de linha fez o povoado, deu-lhe a magnificência de hoje. Os operários têm sempre sobre as suas pessoas as vistas infatigáveis do patrão. O álcool não entra na Pedra polida: ficará, quando muito, fora da cerca de arame, a muralha daquele povoado sertanejo.

As garças voam, descuidosas, porque já compreenderam que não as buscará a arma cruel do caçador. As leis sociais são cumpridas: o patrão fiscaliza até a realização do casamento civil, não consentindo só a existência do ato religioso.

Um dia, a Pedra foi abalada por uma comoção violenta; assassinaram Delmiro de Gouveia, o criador do povoado, o pai espiritual de toda aquela gente. Assassinaram-no traiçoeiramente, a tiros, quando pensava, na quietude de sua casa, em toda a grandeza do que havia criado. Fez-se justiça. Os sicários, capturados tempos após, receberam a condenação. E, diz o povo da Pedra, precisamente no momento em que passavam, condenados, diante da casa da sua vítima, a casa caiu ruidosamente!

Hoje, no local, existe um jardim, todo aberto em flores, cercado por uma grade, em cujo centro um monumento de pedra, com uma placa de bronze, relembra a tragédia horrível.

Os lares dos operarias enlutaram-se. E ainda agora, volvidos anos, quem passa diante das portas abertas vê, como se fosse a efigie de um santo, na sua sala humilde, o retrato do desditoso evangelizador daqueles sertões.

O crime criou a vigilância. A tragédia ditou a prevenção. Agora, quando a noite fecha todas aquelas portas para o sono reparador e o luar casa sua brancura á das casas da Pedra, vêem-se pelas ruas alinhadas, pelos meandros das matas, as sentinelas da prudência, de rifle a tiracolo, atentas, diligentes, Argos verdadeiros do sertão, como que atestando o pavor imenso que aquela gente toda tem de que a fúria assassina perturbe de novo a paz abençoada e a vida de trabalho daquela joia incomparável das selvas…

2 Comments on A Pedra, paisagem alagoana

  1. Joségilmarcavalcantedefreitas // 17 de outubro de 2015 em 16:17 //

    Conhecer o passado ou recordar é como se voltasse no tempo!!!!

  2. Nos meus poucos anos de humilde leitor, já se vão 51 anos, nunca fiz e vi uma leitura tão singela, mas riquissimamente detalha, que capturasse todo conteúdo do fato, o escritor, meus parabéns, sintetizou toda história, do nascimento, do crescimento, dá ordem que ela a disciplina e ao progresso, dá singeleza do povo, seus hábitos, suas moradias, suas vidas, todas ou quase todas, envolvidas direta ou indiretamente ‘Pedra’, lugarejo depois povoado, chegando a se apresentar como uma cidade importante no meu do nada. Como um sonho, uma inspiração, um desejo, uma força sobre humana pode transformar o nada para o tudo. Mais sempre vai existir a mente mesquinha, inócua, que se que ter e ser pela forma mais fácil, e ignorando todo avanço humano, social, econômico, cultural e tecnológico, destrói de maneira irresponsável, não um sonho, mais centenas deles, que morreram juntos com o assassinato de. Delmiro o grande.

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