A história do leite de Alagoas

Planta industrial da ILPISA (www.valedourado.com.br)

Roberto Amaral

A produção e a industrialização do leite em Alagoas, destacada no cenário nacional, teve na formação de suas bases uma coleção de ações empreendedoras, as quais foram executadas por homens regionalistas muito compromissados com o desenvolvimento local. Símbolos de resistência e obstinados, eles foram brilhantes e ficarão para sempre nas páginas da história.

Suas iniciativas foram revolucionárias para as respectivas épocas, sendo grandes exemplos para nossas gerações e para as futuras. Isto porque, dentro de uma condição política, econômica, geográfica e social bastante adversa, vivida no semiárido, tudo conspirava contra o sucesso.

Na busca da sustentabilidade econômica na região Nordeste, Delmiro Gouveia não poupou esforços na procura incansável de caminhos que promovessem o desenvolvimento local. Em uma de suas viagens ao estado do Texas (EUA), início do século XX, no intuito de colaborar com a atividade pecuária, trouxe as primeiras sementes de palma forrageira que hoje, após vários aprimoramentos genéticos e tecnológicos, é o alimento volumoso mais estratégico de nossa pecuária leiteira instalada no semiárido.

Antônio Ildefonso da Silva Amaral, o Major Amaral, foi contemporâneo de Delmiro Gouveia em Alagoas. Eles concorriam entre si no mercado regional de algodão. Major Amaral era proprietário de usinas para beneficiamento de algodão, chegou em Sertãozinho para ampliar os seus negócios e fundou a Fazenda Braz. Sertãozinho, na época, era distrito de Santana do Ipanema (AL), para depois se tornar o atual município Major Izidoro.

Em 1921, Alfredo Ferreira de Moraes também chegou na região procedente de São Bento do Una, Pernambuco, e se instalou à margem direita do Rio Ipanema, formando a Fazenda Cachoeirinha, a uma distância de vinte quilômetros do centro da atual cidade de Major Izidoro. Lá começou o plantio da palma forrageira para alimentar o gado leiteiro.

Em 1928, Leopoldo Tíndaro do Amaral, pai de Mair Amaral, chegou ao mesmo distrito com a família. Procedente da cidade de Correntes (PE), instalou-se na Fazenda Braz, seguiu o empreendedorismo de seu tio Major Amaral (também chamado Tio Toinho), incrementando o plantio da cactácea e promovendo a criação de gado mestiço de holandês.

A relação entre o algodão e a criação de gado leiteiro no sertão das Alagoas era muito promissora na época, pois o caroço de algodão, resultante do beneficiamento dessa cultura, era uma importante fonte proteica e energética para o gado, podendo ser estocado e guardado como reserva. Associado à palma forrageira, era a saída balanceada para enfrentar a seca e produzir leite no Semiárido do início do século XX.

Em 1943 chegaram os irmãos Cintra. Os quais, além da criação de gado leiteiro, iniciaram o fabrico artesanal de queijo de manteiga.

Humberto Pontes Lyra, natural de São José da Laje (AL), amigo pessoal de Mair Amaral, foi o primeiro médico veterinário de Alagoas. Ele teve um fundamental papel na transferência de tecnologias quem embasaram a formação da Bacia Leiteira de nosso Estado, sendo o responsável na articulação dos processos tecnológicos que subsidiaram os produtores de leite de nossa incipiente bacia leiteira.

Pronunciamento de Humberto Lyra, ao lado de Tenório Cavalcante, na primeira exposição de animais de Palmeira dos Índios, AL

Em 1941 realizou em São José da Laje a Iª Exposição Agropecuária de Alagoas. Depois, organizou exposições agropecuárias em Maceió e Palmeira dos Índios.

Em 1955, doutor Humberto foi designado pelo Ministro da Agricultura para adquirir, no Estado do Rio Grande do Sul, reprodutores de alto pedigree para serem vendidos aos criadores alagoanos; naquela missão, convidou, e obteve a aprovação do Diretor Geral de Produção Animal para acompanhá-lo, um dos maiores criadores de gado leiteiro da região – Mair Amaral.

Ao longo dos anos, Humberto Lyra liderou as ações para concretização de nossa Bacia Leiteira de Alagoas, com o apoio de grandes fazendeiros da região, tais como: Mair Amaral e Hildebrando Cintra.

Décio Lyra, filho de Humberto Lyra, e também médico veterinário, relatou-me que teve a oportunidade de conhecer o grande empreendedor Mair Amaral. Disse-me que nas esporádicas viagens a Riacho do Sertão, onde seu pai tinha uma propriedade, costumava se hospedar na casa dos irmãos Cintra, com os quais tinha grande amizade.

Disse-me mais: “tive a curiosidade de estudar a introdução da palma forrageira (Opuncia sp) em Alagoas por Delmiro Gouveia. A partir de tais estudos elaborei um trabalho que foi apresentado no Congresso de Veterinária em Porto Alegre em 1959, ano que me formei em veterinária na UFRRJ.” Décio Lyra, falecido, era casado com Tânia Lyra, uma médica veterinária destacada nacionalmente.

Recepção dos bovinos leiteiros em Maceió

Nos anos sessenta o nome de Mair Amaral emergia para se concretizar como o maior símbolo da produção leiteira no Nordeste e um dos maiores ícones da pecuária leiteira nacional. O legendário pecuarista ficou registrado na história do desenvolvimento agropecuário alagoano e está intrinsecamente ligado ao melhoramento genético de nosso rebanho leiteiro, à produção em escala e à industrialização.

A Seca de 1970

O ano de 1970 foi o ápice de um ciclo terrivelmente seco que assolou nosso Nordeste, provocou legiões incontáveis de retirantes famintos pelas ruas dos centros urbanos e que resultou em muitas mortes de animais e pessoas. Como também contribuiu para a formação de uma geração raquítica de seres humanos, vitimada pela desnutrição e pelas suas sequelas irreparáveis. Um quadro muito bem identificado com o poema Morte e Vida Severina, do escritor pernambucano João Cabral de Mello Neto.

Naquele ano a arte do escritor alagoano Graciliano Ramos, no livro Vidas Secas, foi claramente retratada e identificada com nossa dura realidade:

“A caatinga estendia-se de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O voo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos.” (Vidas Secas – Graciliano Ramos)

Porém, ainda no ano de 1970, empreendedor e detentor de um forte espírito regionalista, o pecuarista Mair Amaral ordenhava suas vacas e era o responsável por uma incrível produção de dez mil litros de leite por dia. Ocasião em que, com a atividade leiteira, empregou e deu moradia a centenas de migrantes vítimas das consequências daquela grave seca, e que não tinham nada para comer, chegavam padecendo na miséria com toda a família.

Paradigmas Avançados

Em 1970 ele era um dos maiores produtores de leite do Brasil.

Mair Amaral

Para se ter uma ideia da proeza de Mair Amaral, se estivesse vivo e se esta mesma produção fosse repetida nos dias de hoje, ele ainda seria individualmente um dos maiores produtores de leite do Brasil.

Em 2001, o seu filho Paulo Amaral, com uma produção individual de 7.000 litros de leite por dia, foi classificado pelo site Milkpoint como o maior produtor do Norte e Nordeste do Brasil.

Como também, fruto daquela produtiva semente, toda família Amaral em Alagoas produz hoje algo em torno de 35.000 litros de leite por dia, e tem uma história moderna marcada por ações empreendedoras e autossustentáveis nesta atividade.

Na melhoria da qualidade genética de nosso rebanho leiteiro, Mair Amaral era um incansável pesquisador. Por diversas vezes importou do sul do Brasil matrizes e reprodutores, de altas linhagens de origem europeia, objetivando formar um cruzamento racial ideal adaptado para nosso semiárido.

Teve na raça holandesa sua principal preferência para a inserção de cargas genéticas altamente especializadas nos cruzamentos que programou para os seus rebanhos estudados. Assim, foi um dos pioneiros que mais contribuiu na formação da raça Girolando. É um fato histórico de relevância para o agronegócio nacional.

Mair Amaral

Muitas vezes este empreendedor recebeu críticas de reacionários que não enxergavam no mesmo alcance da visão de um homem que, pela criatividade e inteligência genial, mudou para melhor o rumo da história agropecuária do sertão alagoano.

O Início da Industrialização do Leite em Alagoas

Após contatos e negociações com empresários pernambucanos, Mair Amaral convenceu-os a instalar pioneiramente em Alagoas, mais precisamente na Fazenda Boa Vista (município de Batalha), uma filial da Indústria de Laticínios Santa Maria.

Depois, resultante da evolução desse processo de industrialização do leite em Alagoas, instalou-se na cidade de Batalha uma unidade de beneficiamento do Leite Nordeste, para depois surgir a CILA (Companhia Industrial de Laticínios de Alagoas), que era dirigida pelo seu tio Luiz Alapenha Amaral.

A CILA passou por um processo de estatização e tempos depois finalmente terminou na fundação, em 1980, da unidade industrial da CAMIL (Cooperativa Agropecuária de Major Izidoro Ltda). Cuja fábrica se manteve sediada na cidade de Batalha, à margem do rio Ipanema.

A CAMIL foi por muito tempo líder de vendas de leite tipo C no Estado de Alagoas. Produziu também muito leite em pó e manteiga. Hoje, depois do grande sucesso que teve no passado, devido a vários conflitos de gestão que se sucederam até o ano de 2009, a cooperativa entrou em profunda crise financeira, abrindo espaços e oportunidades para o desenvolvimento da nova geração de laticínios.

O Nascimento de Modernas Indústrias de Laticínios

Nos anos 80, pela melhoria da qualidade genética de nossos rebanhos, pela descoberta de formulações nutricionais viáveis, a produção de leite em Alagoas já tinha uma das maiores médias nacionais, conforme dados oficiais. A exposição de animais de Batalha integrava calendários internacionais de referência em gado de leite.

Uma indústria de porte apenas, a CAMIL, não estava absorvendo a oferta de nosso leite, e grande parte da produção alagoana dependia de mercados industriais nos vizinhos Estados de Pernambuco, Bahia e Sergipe. Fato que resultava numa série de transtornos comerciais. Até que José de Azevedo Amaral (Coronel Amaral), natural de Correntes, Estado de Pernambuco, primo e genro de Mair Amaral, decidiu montar mais uma indústria em Alagoas e equacionar os problemas comerciais de nossa produção.

Atitude altamente louvável que resultou num Projeto SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste), que implantou a Indústria de Laticínios Palmeira dos Índios S/A (ILPISA). A qual nascia em 1985 com aquele mesmo espírito empreendedor e na promessa de ser a nova redentora da pecuária leiteira alagoana.

Inaugurada em 1987, na cidade de Palmeira dos Índios, manteve-se sob o comando acionário de José de Azevedo Amaral até o ano de 1990, quando então foi assumida pelo empresário Ricardo de Souza Leão Sampaio. Através dele foi inserida a marca Valedourado nos produtos beneficiados até os dias de hoje, dividindo posições de liderança em diversos itens com Parmalat e Nestlé, na Região Nordeste, nos anos 90.

Coincidentemente, Ricardo Sampaio, usineiro advindo da zona da mata e tradicionalmente comprometido com a cultura da cana-de-açúcar e a sua industrialização, já se encontrava inserido modestamente na industrialização de leite em Alagoas quando comprara, no final da década de oitenta, o Laticínio Alapenha Amaral, na cidade de Major Izidoro, o qual pertencia ao empreendedor Luiz Amaral, tio de Mair Amaral. O laticínio, depois de adquirido, passou a ser denominada de Laticínios RS. Porém, teve as suas atividades paralisadas logo após a aquisição da ILPISA, que centralizou as operações de beneficiamento de leite.

Em 1991, dois empresários que atuavam como distribuidores dos produtos ILPISA, Paulo e Daniel Domingos, inauguraram o Laticínio São Domingos, na cidade de União dos Palmares, e a partir de 1997 passaram a beneficiar um mix diversificado de lácteos, incluindo leite longa vida. Ocasião em que passaram a beneficiar, de forma terceirizada, produtos lácteos achocolatados para a multinacional Quaker.

Neste mesmo período, José Aprígio Brandão Vilela, na cidade de Viçosa, passava a empacotar leite pasteurizado tipo “A” de sua produção na histórica e modernizada Fazenda Boa Sorte. Fábrica que se destacou pela qualidade de seus produtos e foi uma das pioneiras no Brasil a comercializar coalhadas industrializadas.

A Evolução da Indústria Moderna

A ILPISA focou suas atividades iniciais no beneficiamento de leite tipo C, manteiga e queijo mussarela. A partir de 1992, diversificou progressivamente sua produção, incluindo queijo prato, ricota, queijo soft (tipo desenvolvido na própria ILPISA), requeijão cremoso, bebida láctea achocolatada, iogurtes, bebidas lácteas com frutas, leite fermentado, leite longa vida, leite achocolatado esterilizado, leites enriquecidos, leite com frutas, iogurtes batidos, coalhadas, bebidas isotônicas, chás prontos para beber, suco da marca Tampico etc.

Esta diversificação de produtos, no objetivo de atender a um mercado que entrava realmente num processo globalizado, foi fator decisivo para o sucesso da empresa. Até porque o governo federal já tinha dado sinais, em vários momentos, quanto à sua política leiteira para o país.

Com apenas uma unidade industrial localizada na cidade de Palmeira dos Índios, unidade esta dirigida pelo médico veterinário Roberto Amaral de 1991 a 2000, que também era o responsável técnico pelo desenvolvimento dos produtos Valedourado, a empresa teve um crescimento espetacular no seu faturamento justamente em um período de crise setorial.  A partir de um faturamento de R$ 9,6 milhões em 1994, passou para um faturamento de R$ 116 milhões em 2000 (valores da época).

Maior média nacional por produtor de leite, no fim dos anos 90

No ano de 2000, a ILPISA adquiriu duas unidades industriais que pertenciam à multinacional Fleishmann & Royal, detentora do Leite Glória, sendo uma sediada no Estado da Bahia e outra planta industrial sediada em Minas Gerais, na cidade de Governador Valadares. Tornando-se o primeiro caso brasileiro em que uma indústria de laticínios nordestina adquiriu unidades estratégicas de empresas multinacionais.

A marca Valedourado, que nasceu no semiárido alagoano, despontou no novo século como o 8º nome do leite nacional, segundo crítica especializada. Motivo pelo qual recebeu premiação do Jornal Gazeta Mercantil, em São Paulo.

Além de ter sua área de qualidade – controlada então por Roberto Amaral – contemplada com o cobiçado Prêmio Internacional de Qualidade Assegurada da Marbo Inc, Chicago, USA (Quality Assurance Award), em 2001. Título que na ocasião foi dado apenas a dez indústrias processadoras de Tampico nos quase sessenta países onde este produto é beneficiado. Em 2003, Roberto Amaral se desligou do vínculo empregatício com a ILPISA (Valedourado).

O novo milênio trouxe boas novidades. Empresas de pequeno porte passaram a se evidenciar no mercado alagoano de produtos lácteos, tais como: Leite Batalha, Leite Muu, Frutigutti e Ducamp.

Roberto Amaral

No final de 2006, Roberto Amaral foi convidado por Jadielson Pessoa – conhecido empresário do setor de supermercados – para ingressar em uma nova sociedade empresarial, que seria sediada na cidade de Palmeira dos Índios (AL).

Assim, surgia a empresa Indústrias Reunidas Bona Sorte Ltda. A qual se originou da aquisição, mediante leilão, da estrutura do parque industrial do Leite Fazenda Boa Sorte que pertenceu a José Aprígio Brandão Vilela, sendo edificada e ampliada no município de Palmeira dos Índios dentro de uma nova visão do negócio de laticínios.

O marco histórico deste feito foi: o município de Palmeira dos Índios (AL), que já sediava a ILPISA, com a inauguração da Bona Sorte se tornou o centro da industrialização do leite no Estado; enquanto que o município de Major Izidoro (bacia leiteira) é o centro da produção do leite Alagoano.

A Bona Sorte ganhou muito destaque no mercado regional, tomando posições importantes em curto espaço de tempo, sendo muito bem avaliada pelo mercado desde os seus primeiros meses de funcionamento.

Em maio de 2015 a Indústria Bona Sorte não mais estava sob o comando do grupo empreendedor que a fundou. Ela foi adquirida pela família Cavalcante que é liderada por Daniel Cavalcante, mediante compra. Ele ficou no comando e à frente de todas as decisões da empresa desde então.

2017 é um ano marcante, começou na angústia do ciclo histórico de seis anos consecutivos de seca na região – e não sabemos para onde isso vai. Alguns estudiosos relatam que esta é a pior seca de todos os tempos, agravando um quadro que já era muito desfavorável pela recessão econômica e pela crise do setor leiteiro. A desvalorização das commodities lácteas nas bolsas internacionais, desde alguns anos, foi apenas mais um fator para deixar o setor mais depressivo ainda.

O Nordeste assistiu ao fechamento de indústrias de laticínios, baixo investimento no setor, plantas industriais ociosas, desemprego e desmotivação.

Vamos em frente, marchar é preciso!

*Publicado originalmente no Blog do Roberto Amaral (http://robertoamaralblogger.blogspot.com.br/2017/03/a-historia-do-leite-de-alagoas.html)

4 Comments on A história do leite de Alagoas

  1. Amei

  2. Aline Menezes Lima // 14 de abril de 2017 em 10:32 //

    Desconhecia esta história! Muito bem elaborada! Moro aqui há 10 anos… cada vez mais encantada…

  3. niraldo nasciento // 16 de abril de 2017 em 21:36 //

    ´ótimo texto

  4. A história da criação da Ilpisa foi narrada incompleta, talvez falta de conhecimento ou quem sabe esquecimento. na vdd a Ilpisa foi uma parceria.uma sociedade desde grande homem Coronel Amaral e Sinval Gaia, é preciso que se faça justiça a história.

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